Quase morreu de susto. Desviou os olhos da leitura que lhe prendia, até então, todas as atenções para se deparar com aquilo: aquele molambo de gente, aquele ser aniquilado, aquela alma penada.
Interrompeu o que lia ao ouvir uns passos arrastados. Quem poderia ser? E de que modo lhe invadira a casa, àquela hora? O ponteiro mais curto e o dos minutos assinalavam, um sobre o outro, meia noite no relógio de parede.
Foi então que percebeu o descuido: esquecera de pedir a cópia da chave a quem teve ao lado e, mais do que isso, à mesa e na cama, durante 15 anos. “Que estupidez”, lastimou-se.
Não puseram crias no mundo, fato que, naquele instante, significava um mal a menos. O fim de um amor e o início de uma agonia não devem, afinal de contas, ter partilha, a não ser a dois, entre agentes do mesmo erro.
Sentiu ânsias de vômito diante daquela cena, daquele pranto sem controle, daquele desespero sem consolo. Anteriormente, sentia dó. E adiava o propósito da separação.
Agora, não. Era nojo o que sentia. Percebeu que não seria a força incontrolável de um bem querer o que então impedia o término do relacionamento doentio e sem sentido. Até porque os conflitos sempre aconteceram a dois, com insultos mutuamente ampliados e agravados, dia após dia.
Nunca esteve só nas intermináveis brigas. Assim, não podia compreender aquele choro, aquela resistência de ferro ao afastamento pronto e definitivo.
Foi então que atinou que já esteve, anos atrás, em semelhante posição. Lutava, à sua vez, pelo amor não devidamente correspondido.
Agarrava-se, na ocasião, ao propósito de não trair a promessa feita ao pé do altar: a da união na pobreza e na riqueza, até a separação pela morte.
Trair tamanho compromisso lhe parecia um pecado maior do que o da traição carnal, o cometido em cama alheia. Sim, bem que soube disso. E, é claro, nunca esqueceu do que, por seu turno, também fizera.
Percebeu que a resistência que já foi sua e a daquele farrapo humano que agora lhe violava a casa e o sossego tinham a mesma substância. Resultavam da inadmissão ao fracasso de um projeto de vida, o mais íntimo e pessoal que alguém possa ter.
Seja como for, era chegado o fim. A vizinhança também percebeu isso quando o som de dois tiros varou aquele início de madrugada.
(Mais do que um conto, uma brincadeira endereçada ao amigo Silvio Osias, quando tratávamos, tempo atrás, da linguagem neutra em gênero, coisa pela qual a meninada começava a tomar gosto. Afinal, quem foi para a cadeia, o marido ou a mulher?).
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