SOBREVIVENTES DO NAZISMO, por Francisco Barreto

Dachau, campo de concentração na Alemanha sob o nazismo (Imagem da Enciclopédia do Holocausto)

Nos meus intensos e jovens momentos fora do Brasil, alçam constantes voos na minha memória e me fazem pairar há mais de 50 anos, com meridiana clareza, eventos reveladores. Em junho de 1969, por exemplo, fui informado da possibilidade de trabalho estival para “studentsarbeiters” na Alemanha. Rumei para Munique ao encontro de Gehard Metsch, num burgo chamado Tittmoning na fronteira com a Áustria. Fui recebido com fidalguia e por poucos dias fiquei em sua casa, num burgo medieval onde residiam várias famílias e tinha um pequeno castelo que na era napoleônica fora repartido com os aldeões nada aristocráticos.

Metsch era uma figura notável que se refugiara no Brasil durante o nazismo e retornara à Alemanha em 1966, para viver com a mãe que se ultimava. Havia saído da Alemanha em 1938, fugindo da sanha nazista. Em 1933, depois de encarcerar judeus, socialistas, anarquistas, comunistas e ciganos, a ira genocida passou a perseguir os católicos que haviam se organizado para se opor a Hitler e Munique era o centro da ultima resistência católica ao nazismo.

Implacavelmente, centenas de resistentes católicos bávaros foram presos, condenados a morte em câmaras de gás em Dachau, campo de concentração nos arredores de Munique reservado a religiosos, políticos e sindicalistas.  Metsch, condenado à morte à revelia, fugiu a tempo para o Brasil. Tive a profunda tristeza de visitar Dachau em 1972.

Metsch foi preso em 1936 e, como era apenas um adolescente, solto migrou para a Áustria. Em 1938, com a anexação da Áustria, foi para a Suíça, onde obteve um passaporte do Vaticano mediado por Anna Freud. Veio para o Brasil, onde ficou até 1966. Recebido no Brasil sob a ditadura de Vargas, nos anos 40 foi preso algumas vezes sob a brutal acusação de ser espião nazista. Graças à amizade dele com Anna Freud, obteve um laisser passer rumou de Marseille ao Rio de Janeiro e passou a morar em Petrópolis. Tinha conhecido o pai de Anna, o grande Sigmund Freud. Segundo ele, havia morado com a família Freud por algum tempo.

Em Petrópolis, ensinou alemão e conviveu muitos anos com Stefan Zweig e esposa, distinguido escritor judeu também refugiado no Brasil, de quem se tornou dileto amigo até a morte deste. Conviveu com o notável escritor até o seu desesperado suicídio com a esposa em 1942. Eram judeus e temiam a deportação, como acontecera com Olga Benário Prestes, em 1938 entregue à Gestapo por determinação de Vargas. Grávida, Olga é torturada brutalmente e morre em 1942, no campo de concentração de Bernburg. Havia dado à luz Anita Leocádia, que foi entregue à avó.

Gehard Metsch, da mesma geração de Joseph Ratzinger, ambos jovens adolescentes, bávaros e moradores do burgo Titmonning, na década de 30 eram militantes católicos antinazistas. Viveram o mesmo drama sob um mesmo terrível cenário na Baviera. Os dois jovens seguiram diferentes rotas. Metsch fugiu para o Brasil e Ratzinger foi obrigado ir para tropas nazistas. Quando fez 14 anos em 1941, Joseph Ratzinger teve de se incorporar à Juventude Hitlerista. Em 1943, com 16 anos, foi à guerra pelo alistamento obrigatório alemão e combateu numa divisão da Wehrmacht. Foi liberado pelos aliados em 44.

Retomando a sua vida civil, Ratzinger reencontrou a sua resistente família católica. Metsch só reencontrou a mãe trinta e poucos anos depois. Ratzinger Ingressou no seminário com o irmão Georg e foram ordenados padres em 1951.

Os jovens Joseph Ratzinger e Gehard Metsch foram sobreviventes do nazismo e fizeram da fé católica suas missões de vidas. De um modo direto com Gehard, e indiretamente através do último, tive a oportunidade de conhecer jovens mutilados pelo nazismo. Metsch retornou do Brasil nos anos oitenta. Tinha um extremado amor ao Brasil, quando pode consumar um desejo infindável que era de morrer no Brasil. Passou seus poucos últimos anos aqui.

Saíra da Alemanha infelicitado. Nunca conseguira viver a grande vocação que tinha tido toda a vida: a de ser padre. E dizia que seu grande e ultimo sonho era converter a mãe materialista Fraü Metsch ao catolicismo. Filho de general médico prussiano e de uma mãe que na juventude fora da famosa Liga Spartacus liderado por Rosa de Luxemburgo, de matriz marxista, anti-imperialista e revolucionária comunista. A mãe era materialista e anticlerical. Nunca permitiu que o Metsch, quando jovem, concluísse o seu seminário católico em Tübing.

Raztinger tornou-se padre e alcançou a santidade de ser o Papa Bento XVI, e Metsch apenas um devoto católico que passou a dedicar o resto da sua vida através da Misereor e a Ad Veniat, instituições católicas que ajudavam através delas os perseguidos da ditadura brasileira na Europa em suas dolorosas diásporas.

Metsch, no seu anonimato exemplar, deu uma grande contribuição para a distribuição dos compulsórios impostos religiosos “Kirchensteuer” para os países do Terceiro Mundo. Na Alemanha, até hoje são pagos impostos pelos alemães contribuintes cerca de 9,0% a.a. para as igrejas católicas, luteranas, israelitas e são doados no mundo inteiro a projetos sociais e das igrejas e do clero. O Brasil sempre foi alvo desta generosidade que custeia há décadas investimentos em infraestrutura, religiosos e projetos sociais.

Em 2001, fiz com a minha família uma linda viagem a deslumbrante Baviera e retornei a Titmonning às margens do Rio Salzach, que separa a Alemanha da Áustria por uma pequena ponte de madeira, sob a qual um curso de água desce celeremente em direção a Salzburg, chão natal de Wolfgang Mozart.

Fui até o Bourg de Titmonning encravado numa colina, entrei e a minha memória se aguçou. Fui a até a casa de Gehard Metsch refazendo um caminho que havia trilhado 53 anos atrás. Ousei e badalei um sino na porta da casa e me atendeu um simpático e velhinho casal. Perguntei-lhes sobre Gehard Metsch. Admirados com o meu infame alemão, indaguei sobre o querido amigo. Responderam em bayerisch, expressando com gestos negativos que ele não existia mais. E ainda acrescentaram de modo compreensível: “Kaputt in Brasil”.

Realizara Metsch o seu grande e ultimo desejo passar o resto dos seus dias no Brasil. No Rio de Janeiro, fechou os olhos e deixou os seus restos mortais.

É BOM ESCLARECER
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Uma resposta para SOBREVIVENTES DO NAZISMO, por Francisco Barreto

  1. Regina Lyra escreveu:

    Caro Francisco Barreto,
    Seu texto nos leva a história da segunda guerra, onde pessoas que veio a conhecer, resistiram bravamente. Vieram morar no Brasil com toda sua história de fugas e lutas.
    Muito boa a leitura. Continue nos brindando com seu conhecimento. Forte abraço,
    Regina Lyra