ADEUS ÀS ILUSÕES, por Babyne Gouvêa

Foto: Mídia Ninja

Podia ser tema de filme, mas aqui não é. Atual e dura realidade me leva à reflexão, no silêncio da noite, sobre mudanças de valores da nossa sociedade.

Lembro bem que o primeiro mandamento das nossas lições domésticas e escolares era a proibição à mentira. Mentiu, podia se preparar para receber punição. Havia, decerto, quem se destacasse como personagem do anedotário da cidade, quando reconhecido como mentiroso contumaz. Justiça seja feita, eram mentiras engraçadas. Nada de maldade, posso assegurar.

Outro mandamento a ser cumprido à risca era o respeito às diferenças. Fossem elas de raça, nível social, gênero, religião e demais distinções. Nada de preconceito. Caso houvesse, o comum era se conter e não se manifestar. A educação de casa ia à praça. Geralmente.

Lembranças não param. Muito bom lembrar a época em que os governantes conduziam campanhas de vacinação garantindo imunização aos habitantes contra enfermidades. Como a população se sentia segura! Na fila de espera da vacina, todos usavam indumentária à altura da importância do imunizante.

Memórias prosseguem. Imaginem que os pensamentos estão no governador da Paraíba, João Agripino, na década de 60. Precisamente quando ele comandava multidões à beira-mar, no mês de dezembro, em homenagem à Iemanjá – divindade de religiões de origem africana. Comportamento elogiável de um governante contrário à intolerância religiosa. Todos aplaudiam a sua conduta, à época, mesmo adeptos de outras religiões.

Haja ecletismo nas recordações. Justifica-se. Afinal, são sessenta e oito anos de existência e muitos testemunhos. Observem que rememorei apenas quatro temas: mentira, respeito às diferenças, vacina e sincretismo religioso.

Pontos relembrados me levam a interrogar onde estão os princípios adquiridos, outrora, por inúmeros conterrâneos que tiveram as mesmas oportunidades de formação que eu tive. Sim, podem responder aqueles que vestirem a carapuça.

Ora, conterrâneos, se apoiam política negacionista, preconceituosa e antidemocrática, logo prestigiam quem representa o atraso e o execrável na nação, nos dias atuais.

Meditações permanecem em torno destes mesmos contemporâneos. Penso na sua ausência de sensibilidade diante dos 20 milhões que vivem na pobreza, nas grandes cidades, e nos 33 milhões que passam fome.

Ainda nas minhas reflexões questiono como podem aplaudir este calendário eleitoral com auxílio pífio, com término pós-eleição? Todos sabem que a ajuda é passageira e ilusória, para ludibriar nosso povo sofrido.

Realmente, sou de um tempo onde os valores éticos eram outros. Ingenuamente, vivia na certeza de que havia uniformidade nas convicções humanitárias entre os meus contemporâneos. Amarga ilusão!

COM O SURSIS DA VIDA, por Francisco Barreto

Existem dias em que vencidas as noites escuras ao amanhecer despertamos com ânimo para reverberar esparsas e arrebatadas ilações sobre o que somos e o que temos vivido num profundo mergulho que nos faz refletir sobre a alma e o tempo.

Ancoramo-nos em reflexões debruçados sobre o saldo temporal declinante que nos regateia a vida. A lucidez episódica nos aguça uma breve avaliação sobre os prazeres, temores de ontem e de sempre, sacolejando afetuosas e duras avaliações sobre a nossa trajetória de vida.

Creio ser de fundamental importância creditar aos nossos entes, família e amigos queridos, que leais legatários dos nossos afetuosos sentimentos. Inevitável é que temos a certeza – e sentimos nas nossas longas caminhadas – que os nossos passos foram um dia firmes e hoje patinam lentos, vacilantes, anunciando a sua tendência ao exercício findo.

A ninguém é permitido fazer “mise en scène” ignorando e se ludibriando em não querer admitir que um dia desses não teremos mais forças para o caminhar. Sempre acontece a qualquer um ou uma, ao mais comum dos mortais.

Como um andarilho de olhos abertos, percorri caminhos em marcha forçada sem me desviar dos embates que a vida sorrateiramente me impôs. Nunca deixei de enfrentar os ônus e desgraças que me ocorreram e poderiam ter maculado o meu destino, ferindo a minha honra, dignidade, moral pessoal e pública.

Espero ter conseguido, salvo melhor juízo, sob a proteção de minha fé e da minha consciência política, discernir entre o que é certo e o que fora errado. Plantei e cultivei toda a minha convicção de que neste mundo cumpre agir com honestidade, servir aos outros, ser generoso, solidário e abraçar os que sofrem injustiças em nome do respeito à condição humana.

Sinto claramente que os meus caminhos trilhados foram sempre do bem e fui uma pessoa honesta sem perseguir a glória. Omissões, atos dolosos ou culposos, voluntários ou inconsequentes, por lapsos de memória não lembro tê-los cometidos. Se os fiz, peço clemência aos eventuais ofendidos.

Nunca busquei acumular riquezas materiais, vaidades e vantagens ilícitas, ilusões e vanidades derivadas de podres poderes políticos e pessoais fictícios edificados pela arrogância e presunção de superioridade.

Ao meu tempo, a minha alma pequena fez a minha história com andanças de quem “se arriscou, chorou, riu, amou, sofreu, teve dúvidas, se apaixonou por pessoas, por ideias, crenças e lugares”, como me disse o meu grande e fraterno amigo Cristovam Buarque.

Não colecionei amarguras, decepções, tristezas e rancores. Se as tive, dissiparam-se com o amanhecer de todos os meus dias. A solidão sempre foi a minha eterna companheira, minha fortaleza, que procurei e encontrei como o alimento da minha alma sempre pequena. Nela me escudei para continuar vivendo como um danado.

Sempre me enterneci feliz com algumas poucas homenagens, sabendo-as, entretanto, que muitos as recebem, poucos as merecem. A franqueza afetuosa dos familiares e amigos me ensinou viver. As agressões que na vida pública me foram feitas nunca me atingiram, porque eram frutos do ódio. Passaram ao largo.

Sobrevivi aos amargos dias de exílio da minha juventude. Passou o sofrimento. Saí dele, mas ele sempre viveu dentro de mim. Foram anos de uma juventude massacrada. A ditadura conseguiu o malefício de congelar, senão de sepultar, a juventude dos que a combateram por nobres causas.

Ao longo daqueles intermináveis anos, as sofridas lembranças me propiciaram me conhecer e descobrir quem eu sou, o que sou e os meus limites.

Tive uma família linda, meus pais e muitos filhos, todos sadios de caráter, com espíritos superiores e arrebatados. Embora sempre a distância, e na minha inquietude, os quis livres e autodeterminados. Foi-me uma dádiva divina.

No ocaso da minha vida, busquei refúgio na natureza do Engenho Laranjeiras. Dias luminosos. Flores radiantes dos meus jardins e lampejos sonoros de muitos pássaros me projetaram longe, muito longe, da solidão.

Da natureza, procurei ser o patrono, e com meu olhar permanente sobre as plantas e os animais, estes me deram certa longevidade e alegria de viver. Aprendi a ver a natureza sob olhar do Divino e compreender que ao assim fazer não apenas a contemplava, estava diante de uma bela oração.

Exiladamente afastei-me de uma vida mundana numa sociedade injusta e inaceitável. Pelos meus livros e escritos busco exalar os meus modestos sentimentos, os mais íntimos e afetuosos, gestados no meu hoje coração já cambaleante.

Tempus fugit. Imprevisível, suspeito apenas o que me irá acontecer. Não desejo conviver com inusitadas surpresas. Preparo-me para o inevitável. Quero estar lúcido como se soubesse a verdade, pronto como se estivesse para morrer, como nos insinuou a alma poética de Fernando Pessoa.

Desejo ardentemente que a família e os amigos recorram aos afetos que os dediquei. Sorriam. Continuarei sempre de mãos dadas com eles. Digam a não à Tristeza, porque foi a Alegria e a Felicidade que guiaram os meus passos. Assim, sobrevivi como náufrago num mar de afetos. Vivi como um danado.