A ÚLTIMA VEZ QUE VI PARIS, por Francisco Barreto

Cena do cotidiano no Quartier Latin, Paris, Anos 60 (Foto: Francisco Barreto)

Existem livros e filmes que aterrissam como um corisco na memória. Por felicidade ou tristeza, entranham-se em nós para sempre. Viram tatuagens. Deles emergem profundas lembranças que nos excitam a controversos e necessários sentimentos. Retornar prodigamente a enevoados pensamentos por devoção à memória, quaisquer que sejam as sequelas, há de ter a força de revisitar o passado no presente. A memoria não se esvai e nunca se foge dela.

Subitamente, lembro-me de Rosebud, palavra pronunciada pelo Charles Foster Kane, segundos antes de morrer, numa cena final do filme de Orson Welles (Cidadão Kane, 1941), cultuado como um dos melhores da cinematografia universal. Intrigou a todos que viram filme o balbuciar terminal do magnata Kane: Por que Rosebud? A cena traz à tona a imagem de um trenó infantil envolvido pelas chamas. Tinha Rosebud como marca. Nos estertores, Kane (Orson Welles) recorreu à imagem da sua infância pobre, fazendo-se refém da memória que o tutelaria até a morte.

Assim somos nós, mortais viajantes, de olhos abertos nas curtas sendas que nos separam da vida e da morte que nos espreita. Apenas a velhice é capaz de nos dar as mãos até a infância, à juventude, aos felizes e terríveis tempos.

Paris entrou muito cedo na minha vida, sem pedir licença, e invadiu a minha alma. Depois, sob a influência de Hemingway e de Eric Maria Remarque, que com suas memórias me descortinaram o extraordinário cenário parisiense. Pelas mãos de Remarque, em vários dos seus livros passei a transitar por muitos anos nas avenidas, bulevares, parques, monumentos, sobretudo, e perambular nos cais dos buquinistas do Sena. Hemingway, apressado e equivocado, havia intuído que “quando jovens, quem viveu em Paris aprendeu que Paris é uma festa”. Não foi isto que vivi. Muito ao contrario. O meu ser e estar se repartia entre o pesadelo e o sonho.

De Paris, quando lá cheguei ao final dos anos sessenta, tudo que via não me era totalmente estranho. Em pleno apogeu da Ditadura brasileira, fui atraído pelo espírito libertário e sedutor das luzes de Paris. Feito uma esvoaçante e atônita libélula despencando em admiradas e estranhas terras, tal como descreve Albert Camus no ‘Estrangeiro’, após a sua saída da Argélia, saltei em queda livre no escuro, sem mãos e ombros para me amortecer, e o pior, sem perspectiva de volta.

Ainda quase ontem em Paris, à revelia do esplendor urbano, vivi a distância e convivi com a dialética do sofrimento ao estar longe e submisso ao encilhamento imposto pelo autoritarismo. Passei a sentir um forte alívio combinado com uma grande angústia alimentada pelo massacrante sentimento do exílio e de ser um desenraizado.

Um final de tarde no Café Cluny, em St. Germain-des-Près, infelicitado, deu-me a clara percepção de que o meu chão era o da Paraíba e não me seduziria ser colonizado, menos ainda aculturado. As graves circunstâncias políticas impuseram evadir-me para longe da terra. Do além-mar iria algum dia voltar. Entendi que umbilicalmente era paraibano.

A diáspora parisiense me fez ver que o sofrimento tem virtudes dialéticas e pode haver um enorme aprendizado com a dor. O tempo, este pode, pari passu, se alternar, fazendo também fluir o prazer e a alegria de viver. Aprendi que o frio e o calor e os duros invernos andam de mãos dadas com as primaveras.

Passados 52 anos, nada diminuiu minha gratidão à grandeza de sempre de Paris e da França,  a “plaque tournante” dos exilados, dos apátridas, dos desenraizados. Ali fui também acolhido.

Em Paris, eu vi e vivi quase tudo. O amor e o desamor. A alegria e a tristeza. A paz e a desolação. A exclusão e a solidariedade. A distância e a intimidade. O respeito e a agressão. A grandiosidade e a estreiteza. O olhar e a cegueira. Os pesadelos e os sonhos. O bem e o mal. O mundo se descortinou. A juventude desabrochou. A maturidade colheu flores. Amores lindos e findos.

Paris nunca seria a minha terra, mas o lugar do acolhimento, da cultura, da inteligência e do saber. Lá, aprendi a intensidade dos princípios humanos e a louvar a retórica da humanidade pela grandeza dos sentimentos universais: Liberdade, Igualdade e Fraternidade.

Hoje, mais do que nunca, fica a sensação de que, mesmo tendo saído do exílio, Paris nunca me deixou. Ficou tatuada para sempre na minha memória. Dela me despedi há décadas. Em Outubro de 69, a última vez que vi Paris. Dieu Merci.

PERDÃO, NERUDA, por Francisco Barreto

Quero apenas cinco coisas…
Primeiro é o amor sem fim
A segunda é ver o outono
A terceira é o grave inverno
Em quarto lugar o verão
A quinta coisa são teus olhos
Não quero dormir sem teus olhos.
Não quero ser… sem que me olhes.
Abro mão da primavera
para que continues me olhando.
Pablo Neruda

Exumando deslumbramentos dos meus dezessete anos, sinto ainda hoje que Pablo Neruda, sem pedir licença, invadiu a minha alma e passou a conviver comigo na minha adolescência e depois na maturidade.

Em 1965, de ônibus, movido pelo meu arrebatamento aventureiro, fui até Buenos Ayres via Montevidéu, e nesta ultima, a tiracolo, fiz de Neruda meu companheiro daquela longa viagem. Ele e os seus Cien sonetos de amor.

Com Neruda, aprendi que a grandeza da síntese é a alma da poesia. É o mais difícil dos gêneros literários, que nos faz desaguar em emoções, porque cada frase é lavrada com extremo afeto.

Os grandes poetas, e Neruda o era, nos fazem latejar e vicejar sublimes emoções. Todas as suas linhas foram impregnadas por emoções e nelas me encontrei. Sempre afetuosamente. Em seu Poema 20 nos faz delirar:

Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Escrever, por exemplo: “A noite está estrelada,
e tiritam, azuis, os astros lá ao longe”.
O vento da noite gira no céu e canta.

Por Neruda, e sua grandeza poética, sempre conservei uma profunda e enraizada admiração. Atiçara-me sempre o desejo de ver e conhecer Pablo Neruda e poder dizer da minha extraordinária alegria.

Em 1973, fui atraído pela possibilidade de encontrá-lo. Lendo o Nouvel Observateur me deparei com uma entrevista feita pelo grande Jean Lacouture, autor de memoráveis biografias de André Malraux e Pierre Mendès France.

O habilidoso articulista, entrevistando Neruda, então Embaixador do Chile na França, de chofre lhe perguntou: “A América Latina não lhe falta?”. Neruda lhe disse: “Não, todas as semanas vou à América Latina. Todas as quartas-feiras vou a Librairie Espagnole”.

E ia mesmo. Lá encontrava muitos amigos latino-americanos, exilados ou não, e alguns resistentes da Guerra Civil da Espanha. Tinha uma reverência muito grande por Antonio Soriano, republicano e resistente, exilado no final da Guerra da Espanha. Era o dono da Librairie Espagnole.

Ao ler a entrevista do hebdomadário Nouvel Observateur, havia encontrado uma preciosa senha para ir ver Neruda. Numa quarta-feira qualquer, fui até à Rue de Seine, no Quartier Latin, em Paris.

Era um minúsculo estabelecimento, porta e vitrine que permitia ver tudo internamente. Passei na frente, e num exíguo espaço atrás da vitrine vi alguns idosos senhores palestrando alegremente. Uma cadeira de balanço de palhinha e lá estava Neruda; no colo, sua boina basca.

Demorei a acreditar no que estava vendo. E por segundos me detive vendo os desajeitados livros exibidos no mostruário da vitrine. Fiz meia volta, hesitei, em seguida entrei. Cumprimentei a todos e passei a deslizar a minha vista nas prateleiras de livros. Sem desgrudar da minha intenção, mantive os olhos fixos em Neruda.

Alguns minutos depois, retirei-me da Espagnole em estado de graça. Não tive a coragem de me dirigir a Pablo Neruda. Brutal e incomensurável timidez que se repartia como uma certa falta de coragem. Havia terminado o meu extraordinário encontro com Neruda. O arrependimento me incomodou sempre. Havia me conformado com um lapso de visão que sempre foi compensado pela leitura de seus escritos.

Tempos depois, ainda em 1973, Neruda regressa ao Chile para morrer. Sucumbiu a um câncer de próstata e foi embora 11 dias depois do golpe de Estado, em 23 de Setembro. Lembro-me com nitidez as imagens televisivas do seu funeral no Cementerio General em Santiago.

Impressionou-me o desfile do seu esquife ladeado por corajosos militantes comunistas que cantavam a Internacional. Ao longo do cortejo fúnebre muitas foram as vozes que gritavam “Companheiro Neruda!” e todos respondiam “Presente!”. O cortejo era escoltado por soldados armados. Terminada a cerimônia, todos foram presos e constaram da lista de mortos e desaparecidos sob as atrocidades pela ditadura chilena.

O grande Pablo Neruda não merecia ter tido um final tão dramático vendo o seu amado Chile trucidado por uma brutal e criminosa ditadura.
Os que sempre lhe amaram poderiam naquele 23 de Setembro de 1973 escrever os versos mais tristes.

Hoje mais do que nunca, se pudesse lhe diria: “Perdão, Neruda, não ousei lhe reverenciar com a minha alegria ao ter lhe visto de tão perto”.
Como Pablo Neruda sempre profetizou, “A timidez é uma condição alheia ao coração, uma categoria, uma dimensão que desemboca na solidão”.

Hoje, solitariamente, muito tempo depois me resta apenas rogar a Neruda que me perdoe por não ter lhe expressado a minha mais profunda homenagem por ter dado muita luz aos meus passos.

  • Francisco Barreto é economista e Professor de Direito da UFPB