CULTO, por Ana Lia Almeida

Imagem meramente ilustrativa
(Foto: Evilázio Bezerra/O Povo)

Vamos comigo esse domingo, Bença. Eu passo na sua casa. O Pastor, você vai ver, ele é agraciado. Estou te falando, a gente sai do culto iluminado pela fonte do Senhor, é uma livração. Além do mais, o que você tem para fazer no domingo, mulher de Deus? Preste atenção no que o Pastor explicou semana passada: o descanso dominical é um repouso ativo, voltado à oração e ao louvor, não um convite para o ócio que só leva aos pecados da preguiça, da gula e da luxúria. Mente vazia, oficina do diabo, você bem sabe.

Os quarenta minutos de espera na parada de ônibus já eram castigo suficiente quando a vizinha de Rita chegou com essa conversa. Era do tipo que falava pegando nos outros, exigindo atenção exclusiva. Não tinha escapatória. Encarava as pessoas sem a mínima chance para o desvio dos olhos e quando sentia que o olhar estava parado, pensando em outra coisa, ela apertava as duas mãos nos ombros, segurava firme no braço ou pressionava levemente o queixo da pessoa com o polegar e o indicador. Por sorte ela não pegava o mesmo ônibus de Rita, mas por azar ônibus nenhum passava nessa manhã abençoada.

Irmã, agradeço demais o convite, mas eu já tenho a minha Igreja e por enquanto estamos orando pela internet. Foi até proibido fazer culto presencial, não foi? Com esse povo todo morrendo, Deus me livre ficar aglomerada, já basta esses ônibus lotados que a gente é obrigada a pegar. Eu prefiro o culto on line, mesmo, porque enquanto assisto já vou adiantando o almoço e fico logo livre pra dar o meu cochilo. Até porque esse domingo tem Paredão do BBB, eu acabo dormindo tarde e no outro dia estou aqui de novo esperando esse ônibus que não passa. É hoje que Dona Laura acaba comigo, atrasada desse jeito.

Seguiram-se dez minutos de sermão: como ela podia se somar às vozes contra a liberdade religiosa nesse mundo perdido onde os bares e os shoppings estão todos abertos e lotados; como ela podia alimentar sua alma da graça divina por meio de um computador; como era que uma mulher direita como ela podia assistir aquele programa do demônio cheio de depravações.

É que eu adoro a menina Juliette. Ela é daqui da Paraíba, sabia? E como sabia, se você não assiste? Ela não é rapariga nada, é uma menina muito inteligente e estudiosa. Minha filha Maria Clara está estudando para entrar na faculdade onde ela se formou, com aqueles professores maravilhosos que ela falou lá na televisão. Eu sei que no BBB estão se aglomerando também, mas pelo menos não tem risco pra mim, que tô assistindo, não é verdade? E é bom acompanhar um pouquinho da vida dos outros, já que não pode sair de casa. Graças a Deus chegou o meu ônibus. Até logo, Irmã, se cuide. Fique em casa e ore por mim, porque a patroa hoje vai estar furiosa.

CANSAÇO, por Ana Lia Almeida

Imagem meramente ilustrativa. Foto: Brasil de Fato/Pernambuco

Mas você está cansada de quê? A dois passageiros de distância, Rita se pôs a imaginar seus mil motivos para responder àquela pergunta que o rapaz fez à moça bem ali do lado. Sua noite mal dormida por causa da azia depois do cuscuz com leite no jantar. Suas horas extras para pagar a prestação do celular novo de Maria Clara assistir às aulas dela. O serviço que era muito na casa de Dona Laura. As varizes que ao fim dos dias doíam cada vez mais em suas pernas.

Estou cansada das suas brigas, do seu ciúme, de você não querer deixar eu fazer as minhas coisas. Estou cansada de você, Eugênio. Os olhos de Rita se encontraram com os de algumas outras pessoas que estavam ali perto do casal em crise. Os muitos passageiros que ouviam a conversa partilhavam expressões de assombro ou divertimento enquanto Eugênio continuava com o braço enlaçado na cintura da moça como se aquilo tudo não fosse com ele.

Calma, neném. Não me chame assim, já disse mil vezes. Ah é, e por acaso ele não te chamava de nenhum apelido carinhoso, hein? Está vendo só, Eugênio, é disso que estou falando; eu vou-me embora. A moça foi abrindo caminho entre os colegas da condução e Eugênio gritando que aquela não era nem a parada dela, que o motorista não abrisse a porta porque tinha uma mulher louca querendo descer fora do ponto, que ela ia se perder e podia ser atropelada, e nisso a moça já descia correndo as escadas do ônibus em direção à rua.

Cinco segundos de silêncio no lotação. Depois disso, foi o homem chorando alto com as mãos no rosto e o falatório generalizado, os mais de perto explicando aos de trás o que tinham visto e enfeitando a história de mil modos. Que a mulher não gostou do cara tê-la chamado de neném e foi-se embora; que um tal de Efigênio tinha levado um chifre daquela moça que saiu correndo; que um passageiro estava batendo na mulher mas ela conseguiu fugir e uma hora dessas deveria estar na delegacia com a Maria da Penha; que havia uma mulher louca no ônibus que fugiu correndo do irmão.

Rita, que era da turma dos mais perto e assistira a tudo com a maior atenção, não quis se meter. Não confirmava nem desmentia nada, concentrada em seus pensamentos. Sujeitinho esquisito, o tal do Eugênio. Não era à toa que a moça havia se cansado. Ficou lá gritando depois chorando, a maior cena, mas parado feito poste. Porque não foi atrás dela? Vai ver teve uma livrança deixando esse daí para trás. Agora, isso era lá conversa de se ter em ônibus? Ela que nunca ia se passar para isso, expor suas intimidades na frente de todo mundo daquele jeito. Já estava mais do que na hora de vagar um assento para ela, que as varizes hoje estavam demais.