VIDA, por Lúcia Maia

Jardim das Tulherias, em Paris, França (Creative Commons)

Como contar uma história que nos afeta? Esta é uma história que poderia começar por era uma vez…

Eu tinha 20 anos. Naquele tempo, garotas do mundo inteiro faziam política estudantil e começavam a falar em público. Uma revolução de costumes estava a caminho, a vida iria mudar radicalmente para a mulher. Muitos países da América Latina viviam ditaduras militares.

Como deuses, criávamos futuros.

Foi num dia agitado de passeata, com centenas de estudantes na rua que uma amiga me apresentou o irmão. Começara a chover e uma tropa de policiais armados avançava em nossa direção. Ele segurou minha mão para corrermos da polícia. Ele dizia palavras de ordem e as garotas distribuíam panfletos.

A noite caíra sobre nós. A tropa parecia passar em câmara lenta sob um som ensurdecedor. Reuniões e passeatas se espalhavam pelo país e pelo mundo. Líamos, discutíamos e estudávamos, no ambiente frenético daqueles que pretendiam construir um mundo novo. Era 1968. Tudo era só inquietude. As coisas trocavam de lugar com uma velocidade extraordinária.

A vida pulula em casa, na rua, na universidade, nos museus. Em meio a essa ebulição, nos apaixonamos.

Um dia, foi decretada a prisão preventiva do meu namorado. Ele exilou-se em Paris. Um ano transcorreu durante essa separação forçada. Um ano denso, cuja dimensão o tempo do relógio não sabe computar. A paixão viajava por cartas, muitas, toda semana chegavam cartas e cartões postais. Naquele tempo não se tinha acesso às ligações internacionais como hoje.

Quando já não era possível tanta ausência, nos casamos. Por procuração. O marido da irmã dele o representou na cerimônia civil. Era março de 1970. Foi uma cerimônia estranha, poucos amigos presentes, alguns estavam na prisão, eram dias de inquietude. Mas, eu tinha uma família grande e muitos compareceram.

Um misto de medo e vontade de encontrá-lo tomava conta de mim. Partia desprevenida, sem conhecer a língua daquele país e não sabia como se vivia numa cidade cosmopolita. A vontade era maior do que o medo. Tomei um avião e fui ao encontro do homem que, então, tornara-se meu marido. Eu tinha 21 anos; ele, vinte e quatro.

Um mundo novo, a velha Europa: cultura, língua, história, paisagem, clima, comportamento, tudo seria diferente para nós. Ali ficamos juntos cinco anos sem nenhuma volta ao Brasil. A ditadura perdurava.

A paixão se transformou em amor. Não tínhamos nada e tínhamos tudo: a Rive Gauche, o Sena e seus bouquinistes, a Notre-Dame e seus concertos de órgão, o Quartier Latin e suas ruelas ancestrais com restaurantes de cozinhas do mundo inteiro, o Boulevard St. Michel e suas inúmeras livrarias, o Boulevard St.Germain e os incontornáveis cafés, a Sorbonne ainda em chamas de mil protestos, o Jardim de Luxemburgo o primeiro a revelar as estações do ano, ora, primaveril e policromático, ora outonal em cores amarelas, marrons, e vermelhas de uma beleza estonteante, ora todo branco de neve.

Quando chegavam os primeiros dias de verão, a alegria do parisiense explodia num humor irreverente, não raro um estudante desnudava-se e entrava no lago diante dos muitos frequentadores do jardim, a polícia logo chegava para restabelecer a ordem; havia também o costume de jogarem água sobre os passantes do Boulevard, era um tipo de celebração com a chegada do calor, após tantos meses de frio entocados em ambientes fechados.

Já o jardim das Tulherias era a paisagem para o repouso após as visitas ao Louvre, o Bois de Boulogne e suas tardes de domingo com crepúsculos desatinados e o parque Montsouris refúgio dos estudantes da cidade Universitária no Boulevard Jourdan.

Havia o Louvre, o Grand-Palais e o Petit-Palais, havia o Jeu-de-Paume e sua coleção dos impressionistas e ao seu lado o Orangerie; havia as galerias de arte da rue de Seine, e mil outros museus que descobríamos ao longo dos anos, quando nos aventurávamos pela Rive Droite a flanar pelas Passagens do século XIX sobre as quais falou Walter Benjamin, as galerias do Palais Royal, Vivienne, Panorama e tantas outras verdadeiras joias de bouquinistes, pequenas lojinhas de luxo e beleza.

O que eu mais gostava era das exposições periódicas do Grand-Palais. Reuniam toda a obra de um pintor, até mesmo as telas de coleções privadas, cuja apresentação didática informa sobre o artista, o movimento a que pertencia, o contexto histórico. Assim fui descobrindo a arte, formando um gosto estético.

Havia bibliotecas e muitas livrarias. Havia o programa de TV Bouillon de culture de Bernard Pivot, para falar de leituras. Não havia o Beaubourg nem o D’Orsay. Na estação de trem ainda havia trânsito e em 1972 instalou-se o Teatro d’Orsay de Jean-Louis Barrault e Madelaine Renaud, que encenava peças de autores contemporâneos, Beckett, Sarraute, Duras.

Cantinas, tabernas, restaurantes, cafés eram o novo cenário dos acontecimentos. Em Paris encontramos uma miscelânea de pessoas, intercâmbio de muitos mundos, um carrefour excepcional de estudantes de várias partes do mundo. Logo se descobre que de longe se vê melhor: surpreendia a quantidade de informações do nosso próprio país, pois aqui dentro não se tinha acesso.

Estabelecemos ali, no calor dos acontecimentos a nossa rotina da vida a dois e de estudantes.

Lá viviam ainda Picasso, Sartre, Simone de Beauvoir, Beckett, Cioran, Duras, Henri Lefebvre, Malraux, Claude-Levi-Strauss, Raymond Aron, Lucien Goldmann, Michel Foucault, Lacan, Rolland Barthes, Phillippe Sollers, Julia Kristeva, Baudrillard, Gilles Deleuze, Félix Guattari, Jacques Derrida, Michel Rocard, Georges Marchais, Mitterand, Giscard d’Estaing, Godard, Truffaut, Jean-Seberg, Yves Montand, Jacques Brel e Barbara. Celso Furtado ensinava na Sorbonne e no IEDES no Boulevard Arago. Eram os anos em que a França acolhera muitos exilados da América Latina. Era o tempo dos Beatles e dos Rolling Stones.

Um dia os sinais de declínio foram ficando visíveis. O acontecimento perdera o ritmo e a substância ou se transformava em algo diferente. Cinco anos se passaram. A vida começou a se arrumar para ficar do jeito que ela é hoje. Não sei como nem em que momento deixamos de nos amar. Veio a separação. Ele decide voltar para o Brasil, eu decido ficar. Conhecia o mundo, aprendera a viver e a pensar de outro modo.

Aprendera que nada no mundo era mais difícil do que o amor.

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  • Lucinha e Francisco são sobreviventes dos anos de chumbo

MEDITAR É PRECISO, por Babyne Gouvêa

Imagem: rudecruz.com

Nesta Sexta-feira da Paixão, como boa católica, contemplo as imagens de Jesus Cristo sendo sacrificado por nós, pecadores…”Ele foi ferido por causa de nossa rebeldia e esmagado por causa de nossos pecados. Sofreu o castigo para que fôssemos restaurados e recebeu açoites para que fôssemos curados.”(Isaías 53:4-5)

Penso também no ladrão Barrabás, posto em cruz junto a Cristo. Não sei qual o fruto do roubo cometido pelo gatuno crucificado. Seja lá o que tenha sido deve estar pensando no mal que deixou para a humanidade e, especificamente, para o brasileiro. Segundo os registros, Barrabás se redimiu, e essa ação deveria servir de exemplo para as gerações que lhe sucederam.

Digamos que ele tenha surrupiado joias. Naquela época não existia joalheiros refinados, como os de hoje, mas existiam as Salomés que ostentavam riquezas em suas cabeças, troncos e membros. Essa tradição fincou raízes durante séculos e, historicamente, mais forte em países ricos. Não me oponho a esse costume, desde que o bem precioso seja adquirido com recursos próprios e não alheios.

O nosso país, com uma população majoritariamente pobre, mas com lideranças gananciosas, torna-se sempre palco de notícias que envergonham a sua gente. No poder, os seguidores de Barrabás, ,de forma inescrupulosa, tomam para si pedras preciosas a princípio pertencentes ao Estado.

A Sexta-feira Santa é um oportuno período para reflexão. Pensar no motivo pelo qual Deus transferiu os nossos pecados e nossas culpas para o seu filho Jesus, que sangrou até a morte sob o peso dos nossos pecados.

Esse sacrifício não pode ter sido em vão, notadamente para aqueles que enaltecem Deus, e se dizem fiel a Ele, como alguns governantes da nossa nação. Até Dimas fitou o Cristo pendurado na cruz e perguntou por que motivo fora o Cristo condenado.

A pergunta feita pelo larápio arrependido, como narra a história, deveria servir de lição para as mentes dissimuladas e enganadoras de um povo ingênuo.

Com esperança no Judiciário da nossa pátria, desejo uma Semana Santa de meditação aos brasileiros que, como bons cristãos, saberão seguir os ensinamentos de Jesus Cristo.