UMA VIDA DE ATROPELOS, por Ana Lia Almeida

Protesto pela morte de Kelton Marques, assassinado por atropelamento no Retão de Manaíra (João Pessoa) no dia 11 de setembro último. Ruan Ferreira de Oliveira, acusado pelo crime, continua foragido (Foto: Felipe Costeira, publicada em termometrodapolítica.com.br)

O trânsito já estava parado há meia hora e os passageiros mais impacientes começavam a descer do ônibus para entender o que havia acontecido. Rita aproveitava para complementar o sono nunca dormido nas muitas horas roubadas pela patroa e pelas longas esperas do transporte público. Lá dentro sentada, cochilando, não se incomodava de esperar. Achava era bom, o barulhinho do motor lhe ninando, uma brisa leve saudando seu rosto bem em frente à janela, pedaços de sonho entretendo sua mente com as muitas histórias que ouvia dentro do busú.

A notícia chegou primeiro no sonho de Rita, no lusco-fusco entre o mundo dos que dormem e o dos já acordados. Ela sonhava correndo atrás do cachorro de dona Laura, que de vez em quando se soltava da coleira, mesmo, quando Rita o levava para fazer xixi durante as tardes, aproveitando para bater um papinho com as outras empregadas do condomínio. No meio dessa carreira, no sonho, ela tropeçava em uma pedra e voava por cima de Pimpão, certa de que ia morrer… Já era, já era… Acordou com um frio na barriga, assustada, no meio da reportagem de um dos passageiros que retornava ao ônibus ainda parado.

Já era, mermão, já era. Deve ter morrido antes de cair no chão. E o filho da puta ainda saiu fugido, alma sebosa. Fura o sinal vermelho em alta velocidade, atropela o motoboy e fica por isso mesmo. Eu vi o corpo, voou para longe da moto com a batida, ali no asfalto, todo ensanguentado. Que Deus o tenha. Entregador do Ifood, a família não vai nem receber o dinheiro do caixão. Vida de trabalhador não vale nada, mermão. Se nós não se ajudar, a vida atropela e pronto, não tem um que escape. Tudo que nós tem é nós, se liga na palavra.

Ainda sem entender direito o que estava acontecendo, Rita esfregou os olhos e reparou no movimento pela janela. Pessoas iam e vinham, agitadas; barulho de sirene e buzina por todos os lados. Ambulância. Polícia. Imprensa. O tumulto era grande, e ela resolveu descer do ônibus já praticamente vazio. Ao se aproximar da multidão em torno do corpo do motoqueiro atropelado, passou por trás das câmeras do Jornal Bem na Hora, noticiando a morte do rapaz. A jornalista também anunciava o protesto dos motoboys marcado para o dia seguinte ali mesmo, no local do acidente.

Diante daquele clima de revolta e tristeza, Rita desejou participar do protesto. Se tivesse coragem, amanhã inventaria uma enxaqueca para dona Laura e sairia mais cedo do trabalho. Ela se juntaria aos motoboys, sim, exigindo justiça pela morte daquele menino. Já estava na hora de terem mais direitos, também, que, depois das empregadas, era quem mais trabalhavam, pra cima e pra baixo se arriscando em cima de moto pra ganhar uma mixaria. O rapaz do ônibus tinha razão: se a gente não se ajudar, ninguém escapa dessa vida de atropelos.

QUEM TEM FILHO NÃO TEM SOSSEGO, por Ana Lia Almeida

Foto meramente ilustrativa (Crédito: Plural.jor)

Você viu o tamanho da carreata que fizeram para ela em Campina Grande? A menina é um sucesso! Como eu queria uma filha dessas, que virasse boneca e fizesse de tudo pra resolver meus problemas de saúde… Meus meninos só me dão aperreio. O mais novo anda se metendo com gente errada, dia desses quase a polícia leva. Estão só esperando ele ficar de maior. O mais velho você conhece, não é? Carlinhos.

Rita se prendeu naquela conversa desde que subiu no ônibus. Já dava pra escutar do primeiro degrau da escada, de onde ela lutava para se manter na fila de entrada, cheia de sacolas. Agora, já tendo passado pela roleta, podia ouvir melhor as duas mulheres do banco alto, logo após o cobrador. Acomodou-se ali mesmo, represando um pouco os passageiros que entravam no lotação. A turma passava acotovelando Rita um pouquinho, para descontar, mas ela nem ligava. A viagem era longa e uma boa conversa dos outros ajudava muito a passar o tempo.

Carlinhos está lá, na luta dele. Ah, ele entrega de tudo que tem no aplicativo, principalmente pizza. Pensou em sair por causa daquele aborrecimento, mas acabou ficando. Difícil demais achar trabalho, infelizmente não tem muito como escolher. Você não soube não? Carlinhos foi entregar uma pizza que veio errada. Nada a ver com ele, mas o cliente ficou zangado, jogou uma conversa troncha que ele não podia ir embora e tinha de devolver o dinheiro, terminou chamando o menino de macaco. Essa gente é assim mesmo, uns sebosos. Eu fico com ódio! Sei que Carlinhos terminou dando uns tapas no homem, se atrasando para a entrega seguinte e ainda descontaram da corrida do bichinho. Ele tentou explicar tudo à dona da pizzaria, mas ela não quis conversa. Disse que cliente tinha sempre razão e ficou por isso mesmo. E tem mais, ainda falou da gente aqui do “Norte”: um pessoal muito devagar e ruim de aprender as coisas; bom mesmo era de onde ela vinha, das bandas do Rio Grande do Sul. Foi o que eu disse a ele: veio fazer o quê aqui então, por que não volta pra lá? Mas deixa. Aqui se faz, aqui se paga. Não viu a Juliette, aí, milionária, com carreata e tudo?

Quem tem filho, não tem sossego. Eu já vivia com medo dessa moto de Carlinhos, para cima e para baixo em todo canto. Quando não é entrega de motoboy, é passeando com a namorada. Agora fico também com medo de ele se meter noutra confusão e perder o trabalho. Além do mais, fiquei meio sentida, com essa história, sabe. A gente cria um filho numa luta danada, passa os valores, aí vem um desgraçado chamar de macaco e uma mizera descontar o salário. Se eu pudesse, dava era uma pisa em tudinho. Eu sei que não resolve, mas quando mexe com filho a gente vira onça.

Era muito verdade, Rita pensou. Quando alguém mexia com Maria Clara, que também não lhe dava sossego, ela virava uma onça, mesmo. Levantou suas sacolas do chão sujo do transporte e, devagarinho, chegou no lugar que tinha vagado duas fileiras adiante. Já sentada, orgulhou-se do sonho de Clarinha ir para a faculdade. Sua filha era linda, inteligente e corajosa, que nem Juliette.

MOTOBOY, por Ana Lia Almeida

Motoboy de pizzaria vai receber pagamento em dobro por não tirar folga aos  domingos – Sindvas

Imagem meramente ilustrativa copiada de sindivas.org

Estou de máscara, sim, senhor, pode abrir o portão. Veio errado, o sabor? Peço desculpas, senhor, pode entrar em contato com o estabelecimento para mandarem outra de quatro queijos. Infelizmente não posso, tem de ser o próprio cliente, pelo aplicativo. Sinto muito, mas meu trabalho é só a entrega, mesmo. Entendo. Espero, sim.

Senhor? E aí, disseram alguma coisa? É que ainda tenho outras três entregas. O senhor sabe, quando atrasa já vão logo avaliando o motoboy, dá problema pra mim. O pessoal não quer comer pizza fria, também. Mas não posso fazer nada, senhor. Reclame que mandam outra, já disse. Posso levar essa de volta, se o senhor quiser, mas geralmente a outra vem de cortesia.

Não adianta o senhor ficar me segurando aqui, não faz diferença para a sua reclamação. Ligue, reclame, e espere a sua pizza de quatro queijos. Eu estou calmo, mas tenho de trabalhar. Não tenho a sorte de descansar sábado à noite, pedindo pizza pelo celular. Tenho um monte de corrida, ainda, pra botar comida em casa. Não estou bravo, senhor, só preciso ir embora.

Atendeu? Está certo, eu falo. Alô, Dona Janete? Eu vim aqui fazer a entrega, o cliente não quis receber porque veio errado, frango com catupiry, quando o pedido foi quatro queijos. Eu disse a ele, já, que a senhora mandava outra, mas insistiu pra eu falar, está me segurando aqui, eu cheio de entrega. Já começaram a reclamar, não foi? Pode deixar que eu corro, sim, Dona Janete, é bem pertinho daqui, cinco minutos no máximo chego lá com a pizza deles. Não se preocupe, até mais.

Satisfeito, agora? Não entendi. Devolver o seu dinheiro? Aí o senhor liga de novo e resolve com a pizzaria. Eu? Mas era só o que me faltava, olhe, tenha uma boa noite e boa sorte com sua próxima pizza ou com a devolução do seu dinheiro, como quiser. Por favor me solte, não me faça perder a cabeça. Como é? Repita, se for homem. O senhor vai ver quem é o macaco. Tome, seu imbecil. Eu avisei, não foi? Coma uma fatiazinha de frango com catupiry, que passa. Fui.

Diga, Dona Janete. Já estou aqui na frente, esperando o cliente vir receber. O quê? Descontar da minha corrida?