O SOLDADO JAQUEIRA, por Jesus Soares Fonseca

Imagem copiada do cartaz do filme ‘Pistoleiros – Vingança sem perdão’ (2017)

Na década de 1950 e começo da de 1960, o Sertão do Nordeste era assolado pela lei da pistola, notadamente nos estados de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Alagoas.

Indivíduos inescrupulosos de maus instintos pouco ou nenhum valor davam à vida de seu semelhante. Eram pessoas temidas que apavoravam aqueles que tinham algum desafeto.

No vale do Piancó, precisamente entre os municípios de Piancó e Misericórdia, hoje em dia Itaporanga, surgiu um desses indivíduos, de nome Luquinha, que se tornou um dos maiores pistoleiros da Paraíba, senão do Brasil, segundo alguns exagerados.

Sua origem é duvidosa. Uns dizem que era de São Francisco do Aguiar, hoje em dia Aguiar; outros, que nascera em Boqueirão dos Cochos, que emancipado tornou-se Igaracy. Era um indivíduo de estatura baixa, atarracado, mas altamente perigoso.

Sabe-se que ele matou, a soldo, muita gente, porém nunca foi preso, pois era acobertado por grandes fazendeiros, políticos inescrupulosos, razão pela qual várias lendas foram criadas a seu respeito.

Dizia-se que quando a polícia chegava para lhe prender, ele virava um sapo ou uma formiga. Estórias espetaculares, fantasiosas, criadas exatamente para esconder o porquê, realmente verdadeiro, de nunca ter sido preso.

Em Misericórdia, havia no destacamento da Polícia Militar um soldado de nome Jaqueira, pessoa de bem que sentara praça porque, quase analfabeto, não tinha como sustentar mulher e três filhos.

Jaqueira não era destemido e procurava sempre fugir da violência, comportamento completamente oposto a um militar, notadamente soldado de uma milícia.

Certo dia, chegou à cidade uma volante da Polícia Paraibana, todos a paisana, com a missão de prender Luquinha.

Jaqueira, que no princípio da carreira trabalhara militarmente no município de Piancó, mais precisamente em Boqueirão dos Cochos, conhecia e era conhecido por Luquinha. O Delegado, então, o designou para acompanhar aquela volante na missão de acabar com as peripécias do pistoleiro.

Resignado e naturalmente muito amedrontado, Jaqueira juntou-se aos milicianos, todos a paisana, em uma camionete com a carroceria coberta, com capacidade para 12 passageiros, seis de cada lado.

A patrulha era composta, com Jaqueira, por onze militares. Partiu de Misericórdia em direção à região supostamente frequentada por Luquinha, entre os distritos de São Francisco do Aguiar e Boqueirão dos Cochos.

A distância entre Misericórdia e Boqueirão dos Cochos é de 39 km, aproximadamente. Quem faz tal viagem passa por um primeiro triângulo no sitio Pitombeira, com bifurcação à direita para Piancó e à esquerda para Boqueirão.

Do sítio Pitombeira, segue em frente até outra bifurcação, no sítio Angico Torto, nas proximidades de Boqueirão.

Nessa bifurcação da estrada, havia, na época, uma barraquinha onde o viajor fazia seu lanche, geralmente composto de garapa (caldo de cana) com pão doce. Foi ali que o comandante da volante, vendo o enfado que a viagem já provocara, fez uma parada para descanso.

Um cidadão usando um chapéu tipo ‘sombrero’ mexicano entabulou conversa com o chefe da milícia e lhe pediu carona até as proximidades de São Francisco do Aguiar.

O comandante relutou um pouco em atender ao pedido, vez que se tratava de missão sigilosa, mas, papo vai e papo vem, pressentiu que aquele senhor conhecia por demais a região e poderia lhe ser útil mais adiante. Concedeu-lhe, então, a carona, já que havia na camionete uma vaga, ainda.

Durante a viagem, o carona não tirava os olhos de Jaqueira, deixando-o muito nervoso. Nas proximidades de Aguiar, o homem do sombrero desceu e agradeceu o favor recebido. A viagem prosseguiu.

Um quilômetro à frente, o centro da localidade. Ali a viatura parou, os soldados desceram em frente à cadeia pública local. Nesse momento, o tenente notou que a calça de Jaqueira estava toda molhada:

– Soldado, o que foi isto? Você urinou nas calças?

– Seu Tenente me adescupe, eu mijei, mermo!

– Por que, soldado? Por que está choroso?

– É qui, chefe, aquele home na camionete era Luquinha e ele não tirava os ói de mim… Fiquei com medo dele me matar!

– Soldado, você é um bosta, uma vergonha! Você fica por aqui, não volta mais com a gente.

Semanas mais tarde, Jaqueira foi eliminado dos quadros da PM.

***

No sertão da Paraíba, muita gente diz ‘drumir’, em vez de ‘dormir’. Na primeira pessoa do presente do indicativo, então, é comum alguém falar “eu drumo”.

Há até uma expressão bastante usada para demonstrar esperteza: “E eu drumo?”.

***

Lá em Misericórdia, Jaqueira e família eram nossos vizinhos, na Rua 5 de agosto. Moravam numa casa de propriedade de Sula de Enéas, casa esta que tinha um alpendre, depois da cozinha em direção ao muro, com uma meia parede separando-o de nossa casa.

Durante sua exoneração, a mulher, por diversas vezes, pediu colheres de açúcar a minha mãeba fim de consolar os filhos famintos com uma garapa.

Mãe a atendia, mas, em vez de açúcar, dava sopa de arroz feita no caldo de feijão, como só ela sabia fazer.

Pois bem, Jaqueira, sofrendo demais juntamente com a mulher e os filhos, todos pequenos, ainda pela falta de trabalho, resolveu falar com Dr. Balduino, médico na cidade e deputado estadual. Contou-lhe toda a situação.

O deputado, que tinha muito prestígio no governo de José Américo de Almeida, conseguiu reengajar Jaqueira nos quadros da Polícia, e, desta vez, como cabo.

Um conhecido dele, ao encontrá-lo todo orgulhoso pelas duas fitas que exibia no fardamento, falou:

– Jaqueira, tu já és Cabo?

E Jaqueira, todo ufano, respondeu:

– E eu drumo?

NOS TEMPOS DE MISERICÓRDIA, por José Mário Espínola

Itaporanga nos tempos de Misericórdia. Imagem copiada de itaporangapb.blogspot.com

Itaporanga nos tempos de Misericórdia. Imagem copiada de itaporangapb.blogspot.com

A antiga cidade de Misericórdia, hoje rebatizada Itaporanga, reserva-me boas lembranças. Foi o cenário das férias da minha infância e juventude.

A cidade me fascinava, com as suas ruas repletas de jegues e cachorros, além de porcos refrescando-se espojados nas poças de água suja, pois não havia esgotos e tudo escorria a céu aberto. A sujeira dos porcos espalhava-se por quase toda a cidade.

Uma das lembranças da minha infância era o aroma da cidade. Uma deliciosa mistura de café torrado, lenha queimando e…
Bosta de porco!

Misericórdia era uma cidade de pessoas amáveis, prestativas, solidárias. E dotadas de humor muito peculiar. Algumas até estranhas.

Lá havia um barbeiro que fazia selas. Era o melhor seleiro do Vale do Piancó, além de um espadachim com a navalha e proprietário do Foto e Selaria Senhor do Bonfim, antiga Selaria São Mamede.

Um dos expoentes do esquisitismo da população era Zé de Tachim. Este era um homem de muitas manias. Uma delas, percorrer estritamente sempre o mesmo caminho, e contar todos os passos até a sua casa.

Certa noite, Nonato Biúta sentou-se exatamente sobre o lugar por onde Zé de Tachin acessava a Praça João Pessoa. Pois ele ficou do outro lado rua, até que Nonato foi embora. Só então atravessou.

Outro grande representante da fauna local era Açoite. Um doido nômade. Percorria o Vale, talvez todo o Sertão da Paraíba, ao longo do ano. Quando encontrava facilidades, detinha-se na cidade por algum tempo.

Em Misericórdia, Açoite  “hospedava-se” na Prefeitura e passava o dia se exibindo e pedindo esmola de loja em loja. À noite,  armava a sua rede no terraço da Prefeitura e ficava se balançando bem alto e assoviando. Gostava também de girar um barbante com uma pequena pedra amarrada, roçando o queixo e o lábio. Sempre assoviando. Quando a pedra lhe atingia, a molecada vaiava.

A meninada e os rapazes ficavam em torno dele, dando-lhe corda. Aí, ele contava as histórias mais estapafúrdias.

Açoite podia ser enquadrado na Classificação Internacional de Doenças como Doido de Pedra (CID 10 Ç99), pois andava com pedras no bolso para atirar em quem o aperreava muito.

Certa vez, ele disse que era melhor ser doido em Patos que prefeito em Piancó, que então era a maior cidade do Vale.

***

Em Misericórdia havia uma curiosidade singular: muitas pessoas com nomes que tinham a grafia invertida de um para o outro. Por exemplo: Padre Zé e Zé Padre, Nezim e Ziné, João Doutor e Doutor João, Neci e Ciné. Uma enorme coincidência, claro.

UM CANÁRIO CHAMADO CASSIUS CLAY

Uma das atrações da cidade era o mercado público. Em dia de feira, a gente passeava por lá, vendo os tipos esquisitos e grandes figuras, como Zé Minervino, dono de um cavalo belíssimo, enorme. Ele nos colocava lá em cima da sela e dava um passeio por perto. Ficávamos abestalhados, admirados. E agradecidos.

Outra atração do mercado era a briga de canários. Certa vez, havia um canário que não perdia pra ninguém. O dono, um comerciante local, ganhava muito dinheiro com as apostas e se achava o tal, com seu canário imbatível. Batizou-o de Cassius Clay.

Uma tarde apareceu um matuto com uma caixa de sapato debaixo do braço. A caixa era amarrada com um barbante, e tinha alguns orifícios.

O dono de Cassius Clay viu a caixa do matuto e desafiou-o para uma briga entre os passarinhos. O matuto recusou. O homem insistiu, provocando, dizendo que o canário do matuto era frouxo. Tanto insistiu que o matuto resolveu topar. Mas antes exigiu que a gaiola fosse coberta com um pano. Muito confiante, o dono do canário aceitou.

O matuto abriu a caixa por baixo do pano, e a luta começou. Daqui a pouco se ouviu um chiado vindo da gaiola. O dono de Cassius disse:

– O teu já está chiando!

O matuto respondeu:

– O meu num chia. O meu mia!

A ASTÚCIA DE SEU ELIZEU 

Em Misericórdia existia, evidentemente, o cabaré. Que a minha avó Salomé chamava de rói-couro. Era muito bem frequentado, de estudante liso a prócer da cidade, passando pelo padre. Por lá andavam muitos representantes da elite local. Um desses, Seu Elizeu.

Seu Elizeu era o que se pode chamar de bode-velho, apesar dos seus quase 80 anos. Ele não podia ver mulher. Já Dona Cícera, sua esposa, mulher direita, honesta e muito religiosa (fazia parte das Zeladoras da Matriz), era uma verdadeira dama.

A vida toda Cícera suportou as diatribes e a vida mundana do marido. Um dia, Elizeu pegou uma doença venérea: uma ferida bem feia no dorso do pênis. Foi ao médico, que lhe assustou com o diagnóstico:

– Cancro mole, mas tem tratamento. Mas o senhor vai ter que parar suas brincadeiras, Seu Elizeu. O senhor já não tem mais idade nem saúde para viver se expondo assim!

E prescreveu o tratamento, com antibiótico injetável e Hebrin líquido para passar na lesão. Quem já teve xanha sabe o quanto Hebrin queima! E numa ferida dessas, então…

Dia seguinte, Dona Cícera chegou de manhã cedo da missa e quando abriu a porta do banheiro viu Seu Elizeu sentado no vaso sanitário, soprando desesperado uma ferida horrorosa no pênis. Ficou indignada:

– Bicho safado! Cabra de peia! Cachorro da mulésta! Seu cabra severgonhe! Olha o que tu arranja com essas vagabundas!

Seu Eliseu assustou-se, mas rapidamente recuperou o controle. E disse:

– Ciça, minha véia, esse mundo tá virado! Espia só onde nasceu um terçol!

ONDE ESTÁ JESUS? por José Mário Espínola

Sob a Igreja do Santo Sepulcro, em Jerusalém, a tumba de onde teria sumido o corpo de Jesus após a crucificação (Foto: Dusan Vranic/AP)

Pililiu e Zéorge eram os dois únicos filhos da viúva Sinfrônia. E davam o trabalho de dez! Bastante conhecidos em Misericórdia, tudo o que acontecia de ruim atribuíam a eles. Ô fama ruim dos diabos!

Cansada de tantas dificuldades na criação dos dois, de tantas reclamações, de tanto prejuízo que eles davam, a mãe foi atrás do padre Zé Sitônio. Pediu ajuda.

Padre Zé Sitônio se dispôs a ajudar, mas advertiu: “Esses meninos tão com o diabo no couro! A senhora precisa botar Jesus dentro do coração deles”.

“Mas, Padre Zé, eu num tenho mais moral pra eles. Foi justamente por isso que vim pedir a sua ajuda”. E começou a chorar. O padre orientou, então: “Mande os dois para mim. Mande de um em um. Garanto que eles vão mudar”.

Dona Nenen, como Sinfrônia era mais conhecida, foi para casa. Mandou logo George, o mais velho, falar com Padre Zé.

Zéorge, assim o chamavam, já entrou na sacristia com medo. E o que viu e ouviu só fez piorar. O padre Zé Sitônio ordenou, com ar severo: “Senta aí!”.

Zéorge sentou-se na cadeira de respaldar alto e reto. Olhou pra direita e viu ao seu lado um São Sebastião todo aberto e flechado. Aí ficou menor, de medo. Olhou para trás, e viu um outro santo martirizado, São Manoel. Sentiu-se ainda menor.

O padre puxou uma cadeira e se pôs à frente do rapaz. Sentou-se e perguntou, ríspido: “Onde está Jesus?!”
Zéorge ficou ainda menor, tremendo de medo.

“Onde está Jesus?” Zéorge perdeu a fala, de medo. “On-de es-tá Je-sus?”, gritou o padre.

Zéorge pulou da cadeira e disparou para casa. Lá chegando, enfiou-se debaixo da cama. O irmão Pililiu se agachou para saber o que tinha acontecido, lá na sacristia. Zéorge respondeu, tremendo de medo:

– Pililiu, tamu lascadu. Jesus sumiu e tão butandu a culpa in nói!

BUMBA MEU BOI! por José Mário Espínola

Apresentação de bumba meu boi. (Foto: Wikimedia)

A profissão médica nos reserva muitos prazeres na vida, desde a alegria imensurável de poder restituir a vida a alguém dado por morto, durante um plantão de UTI, até a insubstituível prática ambulatorial.

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DOIS PSIQUIATRAS, por José Mário Espínola

A historieta romântica adiante contada me foi presenteada pelo ilustre historiador e Professor Humberto Melo. Ele chegou ao meu consultório com a historinha embrulhada em “papel de amizade”, como um mimo. Leitor assíduo de tudo o que se escreve, Dr. Humberto acompanha até as crônicas que eu cometo neste espaço.

Nessa tarde, chegou a meu consultório sorrindo misteriosamente. E não aguentou a esperar pelo final da consulta. Disse-me ter ouvido este conto de amor da boca do escritor Ariano Suassuna, a quem atribui a autoria. Sou, portanto, apenas um simples “descritor”. E lembro, para aqueles que não gostarem, que portador não merece pancada.

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MISERICÓRDIA! por José Mário Espínola

Foto: imagem por mera ilustração copiada de medium.com

Rendo aqui minha homenagem ao amigo Derly Minervino de Carvalho, que já partiu, e que me contou essa historieta deliciosa.

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