A antiga cidade de Misericórdia, hoje rebatizada Itaporanga, reserva-me boas lembranças. Foi o cenário das férias da minha infância e juventude.
A cidade me fascinava, com as suas ruas repletas de jegues e cachorros, além de porcos refrescando-se espojados nas poças de água suja, pois não havia esgotos e tudo escorria a céu aberto. A sujeira dos porcos espalhava-se por quase toda a cidade.
Uma das lembranças da minha infância era o aroma da cidade. Uma deliciosa mistura de café torrado, lenha queimando e…
Bosta de porco!
Misericórdia era uma cidade de pessoas amáveis, prestativas, solidárias. E dotadas de humor muito peculiar. Algumas até estranhas.
Lá havia um barbeiro que fazia selas. Era o melhor seleiro do Vale do Piancó, além de um espadachim com a navalha e proprietário do Foto e Selaria Senhor do Bonfim, antiga Selaria São Mamede.
Um dos expoentes do esquisitismo da população era Zé de Tachim. Este era um homem de muitas manias. Uma delas, percorrer estritamente sempre o mesmo caminho, e contar todos os passos até a sua casa.
Certa noite, Nonato Biúta sentou-se exatamente sobre o lugar por onde Zé de Tachin acessava a Praça João Pessoa. Pois ele ficou do outro lado rua, até que Nonato foi embora. Só então atravessou.
Outro grande representante da fauna local era Açoite. Um doido nômade. Percorria o Vale, talvez todo o Sertão da Paraíba, ao longo do ano. Quando encontrava facilidades, detinha-se na cidade por algum tempo.
Em Misericórdia, Açoite “hospedava-se” na Prefeitura e passava o dia se exibindo e pedindo esmola de loja em loja. À noite, armava a sua rede no terraço da Prefeitura e ficava se balançando bem alto e assoviando. Gostava também de girar um barbante com uma pequena pedra amarrada, roçando o queixo e o lábio. Sempre assoviando. Quando a pedra lhe atingia, a molecada vaiava.
A meninada e os rapazes ficavam em torno dele, dando-lhe corda. Aí, ele contava as histórias mais estapafúrdias.
Açoite podia ser enquadrado na Classificação Internacional de Doenças como Doido de Pedra (CID 10 Ç99), pois andava com pedras no bolso para atirar em quem o aperreava muito.
Certa vez, ele disse que era melhor ser doido em Patos que prefeito em Piancó, que então era a maior cidade do Vale.
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Em Misericórdia havia uma curiosidade singular: muitas pessoas com nomes que tinham a grafia invertida de um para o outro. Por exemplo: Padre Zé e Zé Padre, Nezim e Ziné, João Doutor e Doutor João, Neci e Ciné. Uma enorme coincidência, claro.
UM CANÁRIO CHAMADO CASSIUS CLAY
Uma das atrações da cidade era o mercado público. Em dia de feira, a gente passeava por lá, vendo os tipos esquisitos e grandes figuras, como Zé Minervino, dono de um cavalo belíssimo, enorme. Ele nos colocava lá em cima da sela e dava um passeio por perto. Ficávamos abestalhados, admirados. E agradecidos.
Outra atração do mercado era a briga de canários. Certa vez, havia um canário que não perdia pra ninguém. O dono, um comerciante local, ganhava muito dinheiro com as apostas e se achava o tal, com seu canário imbatível. Batizou-o de Cassius Clay.
Uma tarde apareceu um matuto com uma caixa de sapato debaixo do braço. A caixa era amarrada com um barbante, e tinha alguns orifícios.
O dono de Cassius Clay viu a caixa do matuto e desafiou-o para uma briga entre os passarinhos. O matuto recusou. O homem insistiu, provocando, dizendo que o canário do matuto era frouxo. Tanto insistiu que o matuto resolveu topar. Mas antes exigiu que a gaiola fosse coberta com um pano. Muito confiante, o dono do canário aceitou.
O matuto abriu a caixa por baixo do pano, e a luta começou. Daqui a pouco se ouviu um chiado vindo da gaiola. O dono de Cassius disse:
– O teu já está chiando!
O matuto respondeu:
– O meu num chia. O meu mia!
A ASTÚCIA DE SEU ELIZEU
Em Misericórdia existia, evidentemente, o cabaré. Que a minha avó Salomé chamava de rói-couro. Era muito bem frequentado, de estudante liso a prócer da cidade, passando pelo padre. Por lá andavam muitos representantes da elite local. Um desses, Seu Elizeu.
Seu Elizeu era o que se pode chamar de bode-velho, apesar dos seus quase 80 anos. Ele não podia ver mulher. Já Dona Cícera, sua esposa, mulher direita, honesta e muito religiosa (fazia parte das Zeladoras da Matriz), era uma verdadeira dama.
A vida toda Cícera suportou as diatribes e a vida mundana do marido. Um dia, Elizeu pegou uma doença venérea: uma ferida bem feia no dorso do pênis. Foi ao médico, que lhe assustou com o diagnóstico:
– Cancro mole, mas tem tratamento. Mas o senhor vai ter que parar suas brincadeiras, Seu Elizeu. O senhor já não tem mais idade nem saúde para viver se expondo assim!
E prescreveu o tratamento, com antibiótico injetável e Hebrin líquido para passar na lesão. Quem já teve xanha sabe o quanto Hebrin queima! E numa ferida dessas, então…
Dia seguinte, Dona Cícera chegou de manhã cedo da missa e quando abriu a porta do banheiro viu Seu Elizeu sentado no vaso sanitário, soprando desesperado uma ferida horrorosa no pênis. Ficou indignada:
– Bicho safado! Cabra de peia! Cachorro da mulésta! Seu cabra severgonhe! Olha o que tu arranja com essas vagabundas!
Seu Eliseu assustou-se, mas rapidamente recuperou o controle. E disse:
– Ciça, minha véia, esse mundo tá virado! Espia só onde nasceu um terçol!