MILTON DE TODOS OS SANTOS (2), por Francisco Barreto

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Milton Santos (Foto: Observatório do Terceiro Setor)

Em tudo o que fez ou ajudou fazer, Milton Almeida dos Santos foi grande, extraordinário, insuperável. Como geógrafo, escritor, jornalista, advogado ou professor universitário, o conjunto da obra desse baiano monumental o coloca com justiça entre os mais respeitados intelectuais brasileiros do século XX.

Na segunda parte deste escrito sobre quem tenho e guardo como referência, guia ou farol, destaco sua valiosíssima contribuição a uma nova epistemologia da geografia, via teses inovadoras e provocativas, além de criticas que tangenciavam os cristalizados conceitos de espaço.

O nosso Milton de Todos os Santos desmontou velhos conceitos de centro e periferia quando privilegiou a visão das novas tecnologias. Espaço e tempo não tinham limites físicos. Renovou o conceito do localismo e do território. Com precisão, criticou o conceito dominante de globalização oriundo das teses neoliberais, em que os espaços físicos e humanos doravante eram apenas o locus onde tudo se produzia e tudo se consumia.

Também de modo profundo, abordou o imperativo da concepção da ideologia consumista que tenderia a homogeneizar pela cultura mediática o consumo das massas. Acenou para a tese de um possível final das culturas locais, refutando com veemência os energúmenos arautos do fim da história.

As velhas noções de centro e periferia já não se aplicavam, pois o centro poderia, dizia ele, estar situado a milhares de quilômetros de distância e a periferia abranger o planeta inteiro. Daí, a correlação dominante entre espaço e globalização, que sempre foi perseguida pelos detentores do poder político e econômico, mas só se tornou possível com o progresso tecnológico submisso ao capital monopolista.

Para contrapor-se à realidade de um mundo movido por forças poderosas e cegas, Santos admitia que a força do lugar era a única que, por sua dimensão humana, a cultura coadjuvando, anularia os efeitos perversos da globalização.

Milton Santos debruçou-se sobre uma insuperável contradição: o global versus o local. Na medida em que os sistemas globalizados (circuitos superiores tecnológicos do capital induzindo padrões renovados de consumo) poderiam esmagar os sistemas locais (circuitos inferiores de produção e de consumo, incluindo a cultura) essencialmente enraizado nas necessidades do lugar, “a vontade e o mando longínquo”, dizia, criam espaços e territórios “partagés” ou divididos e derivados entre consumos induzidos longe das necessidades estruturais básicas.

A enorme riqueza a partir dos novos cânones intuídos por Milton Santos fez com que ele profetizasse com precisão a emergência e produção de novos totalitarismos, destruidores e recriadores de territórios em que as populações deixam de ser sujeitos e passam a ser meros consumidores homogeneizados pela voraz globalidade.

Na minha embrionária e limitada percepção da inteligência e riqueza teórica de Milton Santos, há quase meio século, não me permitira ter a precisão de sua colossal importância muito tempo depois. A convivência acadêmica com o sábio Milton Santos, enquanto modesto conviva, usufruía da alegria familiar que me foi concedida em sua baiana residência. Fui igualmente brindado pela delicadeza de sua Marie Hèléne.

Milton Almeida dos Santos foi Doutor Honoris Causa em cerca de 20 universidades estrangeiras, tem 52 livros publicados, centenas de artigos, recebeu dezenas de prêmios, medalhas e distinções nacionais e internacionais. Foi ainda reverenciado como Prêmio Vautrin Lud, em 1994, equivalente ao Prêmio Nobel de Geografia, conferido por unanimidade por universidades de 50 países.

Hoje, ele é reconhecido e homenageado por um seleto grupo de acadêmicos e intelectuais brasileiros que o reverenciam silenciosamente. O reconhecem como um dos mais importantes e renomados nomes da inteligência de todos os tempos. O alcance da sua sabedoria, do seu conhecimento e ciência, o largo e vitorioso sorriso deste monumento da negritude brasileira são reservados a poucos. Tenho este privilégio e a honra de ter vivido e conhecido Milton de Todos os Santos.

  • Francisco Barreto é escritor, economista e Professor de Direito da UFPB

MILTON DE TODOS OS SANTOS (1), por Francisco Barreto

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Milton Santos (imagem copiada do blog da Academia de Cultura de Colônia Leopoldina, Alagoas)

Milton Almeida dos Santos continua sendo um ilustre desconhecido. Tinha tudo para ser apenas um negro a mais em cuja gênese estava o brutal escravismo que devastou o Brasil Colônia. Tinha nas suas origens uma sofrida geografia do além mar. Trazia nas suas veias uma enorme capacidade de superação. Foi muito além do que lhe era reservado como descendente de escravo. A rigor soube como poucos afro-brasileiros trilhar caminhos dantes apenas reservados à elite branca.

Fortemente influenciado pelos avós e os pais, todos integrantes do magistério primário, percebeu que indo muito além da régua e do compasso iria se defrontar com promissores desafios nas salas de aulas. Adolescente, passou a ensinar álgebra, matemática, geografia e a língua francesa no Instituto Baiano de Ensino. Aos dezoito anos ingressou na vetusta Faculdade de Direito da Bahia. Como jornalista conviveu com Jorge Amado em Ilhéus tendo sido editor do Jornal da Tarde. Escreveu ainda jovem o compendio Zona do Cacau (Coleção Brasiliana).

Na esquerda baiana foi um ativo militante. Professor de Geografia da Universidade Católica de Salvador, em 1956, a convite do Prof. Jean TRICART fez o seu Doutorado na conceituada Universidade de Estrasbourg apresentando tese sobre o Centro da Cidade de Salvador. Em 1960, criou o Laboratório de Geomorfologia e Estudos Regionais, e tornou-se Livre Docente em Geografia Humana na UFBa.

Em 1964, foi preso; tempo depois, recebeu convites de várias universidades francesas, e sob a interferência da diplomacia francesa partiu para o exilio indo ensinar na prestigiosa Universidade de Toulouse na França. Em 1967, ingressou na Universidade de Bordeaux, então o núcleo acadêmico mais importante da França no campo da Geografia Humana e Urbana. Em seguida, migrou em 1968 para o IEDES – Universidade Paris – I/ Pantheon-Sorbonne.

Nesta última paragem foi quando conheci Milton Santos apresentado que fui pelo grande Prof. Pierre MONBEIG, Diretor do Institut de l´Amérique Latine. Logo em seguida, ele me convidou para ir fazer o 3º Ciclo/Doutorado no IEDES. Foi fundamental para a minha trajetória acadêmica. Fui seu aluno na disciplina Instrumentos da Análise Espacial e Desenvolvimento Regional, e em seguida sob a sua orientação teórica e metodológica, em 1970/72 apresentei o meu projeto de pesquisa intitulado ‘Uma Contribuição à Análise Histórico-Econômica da Formação das Desigualdades Regionais no Brasil’. Fiquei órfão, pois em 1971/72 ele foi embora para o MIT para ser parceiro do famoso Noam Chomsky.

Milton Santos literalmente me adotou como seu pupilo. Mantivemos uma extremosa relação de amizade. Me convidava com alguma frequência a ir até sua residência na Av. René Coty, e tinha sempre a agradável hospitalidade de Marie Hélène, a gentil Mme Santos. A nossa nordestinidade etno-cultural, o fato de também de ser muito jovem e o viver na França forçado pela Ditadura me valeram de Milton Santos a sua indulgência afetiva.

O Mestre Milton tinha uma invejável capacidade criativa, o que me impunha enormes sacrifícios em acompanhar o seu desassombrado ritmo de ideias para as quais não estava preparado teoricamente para absorve-las. Evitava ficar perguntando para não ter que sucumbir à uma avalanche de ideias complementares. Ele desprezava a conduta cartesiana de encadeamentos desprovidos de hipóteses, premissas, teses etc. Simplesmente, ia ao cerne de suas inquietações teóricas e conceituais sem recorrer a demonstrações praticas sem nenhum formalismo ou recursos quantitativos. Diante de uma extraordinária visão teórica e crítica, respeitava Vidal de la Blache, André Cholley, Pierre Georges e o pernambucano Josué de Castro.

Enquanto ele falava, quieto ficava no meu canto, profundamente admirado com a sua desenvoltura e conhecimentos. O meu projeto de pesquisa dormitava timidamente ao meu lado, não me expunha de nenhum modo. Despejava a sua exímia verbalidade que tinha similitude com a agilidade dos capoeiristas do Largo do Pelourinho. Inatacável. Anotava apressadamente as sugestões que podia colher. Para minha sorte, de vez em quando a Mme Santos interrompia com taças de chá, o professor Milton era interditado de tomar café.

Dessas conversas percebia que era inesgotável o seu baú de utopias. Falava gesticulando fortemente e entrecortava a conversa comandada por ele com largas e generosas risadas. A nossa condição de nordestinos me propiciava breves interlocuções e ele adorava falar das suas memórias em Brotas, na Chapada Diamantina no Oeste Baiano. Dizia que havia descortinado o seu interesse pela Geografia quando acompanhara o Prof. Francisco, seu pai, nas viagens pelo belo território da Chapada, e que segundo ele não havia nada igual como síntese das paisagens do Brasil. Encostas íngremes, cânions, grutas, quedas d´aguas imensas, chapadões, com uma cobertura vegetal com todas as variações brasileiras: cerrados, caatingas, campos de vegetação rala, contrastando com enclaves de matas atlânticas.

Conviver algum tempo com Milton Santos era algo formidável, ele tinha sempre uma enorme capacidade de sedução que se aguçava com o brilho dos olhos que sempre eram sucedidos de sonoras e contagiantes risadas. Estava sempre de bem com a vida. Aos colegas franceses, em seminários primava pela ironia e a provocação. Não respeitava manuais, tinha uma incomensurável criatividade como aliada.

  • Francisco Barreto é escritor, economista e Professor de Direito da UFPB