FISIOLOGIA CULTURAL, por Alberto Lacet

Imagem: rtve

Parece que toda instância de dor, medo, ódio, sentimentos de uma forma geral, ou sentidos físicos como sabor, cheiro, sensação térmica de frio ou calor, tudo isso é registrado pelo corpo humano após o ganho de uma forma de expressão sensitiva identificada por canal especifico no cérebro.

O cérebro humano é pois, além da conhecida máquina de pensamentos e formulações racionais para leitura e interpretação da realidade (cuja chave decisiva para execução dessas tarefas foi o lento processo criativo de formulação linguística), é também um dispositivo que prontamente serve de alarme para situações de perigo, ou para sinalizações favoráveis ao relaxamento, à alegria ou usufruto de prazeres diversos.

O cérebro pode ser comparado a um tijolinho de cerâmica onde imagens em forma de símbolos ficam gravados em baixo (ou alto?) relevo de uma forma algo parecida com a escrita cuneiforme dos primeiros e primitivos sumerianos, por exemplo. Ou seja, a nossa mente é uma espécie de retábulo onde se incorporam os chamados tártaros, que podem ser vistos como circuitos eletrônicos que encerram em si dados de memória, e que, uma vez percorridos por corrente elétrica vital, ativam imagens e sons neles (e por eles) codificados.

Desde já, é possível aventarmos que não foi outra coisa senão o crescimento desses arquivos mentais que provocou o crescimento da massa encefálica num processo inversamente proporcional ao tempo — cada vez menor que a evolução nos requisita –– de produção de novos dados, ou seja, deu-se uma inversão de crescimento à medida que a enorme sobra de espaço da massa encefálica em relação aos arquivos nela encaixados durante o passado da humanidade diminuiu à medida que os novos conteúdos (saberes, culturas, e operações tecnológicos) se dilatavam dentro da caixa craniana. Após milhares de anos, o conteúdo passou a crescer em velocidade superior a do continente, criando um descompasso entre caixa craniana e massa encefálica, o que, antropologicamente pode começar a produzir sérios problemas de percurso eletrônico cerebral, estrangulamento do circuito que pode se refletir em esgotamentos da memória, demência etc. problemas em geral de natureza cognitiva para a mente humana.

A ciência de hoje nem discute o fato de que o desenvolvimento de armas pelos humanos, a partir dos períodos intermediários do paleolítico, possibilitou para o homo sapiens a ingestão de carnes como seu alimento principal, e que este consumo exagerado de proteína animal resultou em aumento considerável tanto da caixa craniana quanto da massa encefálica, e ainda, que aquele arcabouço ósseo, se manteve por longo período de modo excedente como um arquivo à espera de dados, que por sua vez estavam reservados ao futuro da espécie. Parece que esse futuro chegou. E trouxe em seu bojo uma multiplicidade incrível de alimentos industrializados que, uma vez ingeridos, danificam o cérebro, com a invasão de produtos químicos agressores que causam desligamentos nos condutos e consequente perda de memória. Esta ação deletéria de agentes corrosivos contidos em alimentos processados, como o aromatizante conhecido por Diacetil, dentre vários outros, atravessa as paredes dos dutos de contenção do cérebro provocando vazamento de arquivos e produzindo demência.

Mas como se dá o processo de tartarização cultural — na mente das pessoas? A resposta não parece difícil quando percebemos que os aspectos culturais mais observáveis porque bem plantados no gosto e na predileção das pessoas ficam por conta da culinária, da música e da dança, manifestações socioculturais vistas normalmente como expressão identitária de uma comunidade. Ora, a culinária se estabelece através do paladar, a música através da audição. São os sentidos que estabelecem tais gostos. Um exemplo bem elucidativo da força desses tártaros formados por uma cultura está na predileção culinária de pessoas criadas no sertão, que sempre preferem, em termos de proteína, alimentarem-se de pratos que incluam carne de sol, galinha de capoeira ou charque, em detrimento de peixes, crustáceos ou camarão, que são a preferência absoluta dos nativos litorâneos. O que mostra claramente o poder que tem a cultura de ‘’grampear’’ nossos sentidos, e grampear aqui tem o sentido de grafar, marcar, fortalecer.

Perguntar não ofende: chegará o dia em que caixas cranianas artificiais serão convertidas em pequenos softwares conectados ao corpo humano como unidades complementares para armazenamento de informações, feito arquivos com diferentes capacidades medidas em terabites?

Se olharmos bem, o corpo já se mostrou disponível para um grande numero de adjutórios e controle externo. Lembremos de membros artificiais, de marca-passos monitorando corações, operando em área externa ao corpo.

A ÚLTIMA VEZ QUE VI PARIS, por Francisco Barreto

Cena do cotidiano no Quartier Latin, Paris, Anos 60 (Foto: Francisco Barreto)

Existem livros e filmes que aterrissam como um corisco na memória. Por felicidade ou tristeza, entranham-se em nós para sempre. Viram tatuagens. Deles emergem profundas lembranças que nos excitam a controversos e necessários sentimentos. Retornar prodigamente a enevoados pensamentos por devoção à memória, quaisquer que sejam as sequelas, há de ter a força de revisitar o passado no presente. A memoria não se esvai e nunca se foge dela.

Subitamente, lembro-me de Rosebud, palavra pronunciada pelo Charles Foster Kane, segundos antes de morrer, numa cena final do filme de Orson Welles (Cidadão Kane, 1941), cultuado como um dos melhores da cinematografia universal. Intrigou a todos que viram filme o balbuciar terminal do magnata Kane: Por que Rosebud? A cena traz à tona a imagem de um trenó infantil envolvido pelas chamas. Tinha Rosebud como marca. Nos estertores, Kane (Orson Welles) recorreu à imagem da sua infância pobre, fazendo-se refém da memória que o tutelaria até a morte.

Assim somos nós, mortais viajantes, de olhos abertos nas curtas sendas que nos separam da vida e da morte que nos espreita. Apenas a velhice é capaz de nos dar as mãos até a infância, à juventude, aos felizes e terríveis tempos.

Paris entrou muito cedo na minha vida, sem pedir licença, e invadiu a minha alma. Depois, sob a influência de Hemingway e de Eric Maria Remarque, que com suas memórias me descortinaram o extraordinário cenário parisiense. Pelas mãos de Remarque, em vários dos seus livros passei a transitar por muitos anos nas avenidas, bulevares, parques, monumentos, sobretudo, e perambular nos cais dos buquinistas do Sena. Hemingway, apressado e equivocado, havia intuído que “quando jovens, quem viveu em Paris aprendeu que Paris é uma festa”. Não foi isto que vivi. Muito ao contrario. O meu ser e estar se repartia entre o pesadelo e o sonho.

De Paris, quando lá cheguei ao final dos anos sessenta, tudo que via não me era totalmente estranho. Em pleno apogeu da Ditadura brasileira, fui atraído pelo espírito libertário e sedutor das luzes de Paris. Feito uma esvoaçante e atônita libélula despencando em admiradas e estranhas terras, tal como descreve Albert Camus no ‘Estrangeiro’, após a sua saída da Argélia, saltei em queda livre no escuro, sem mãos e ombros para me amortecer, e o pior, sem perspectiva de volta.

Ainda quase ontem em Paris, à revelia do esplendor urbano, vivi a distância e convivi com a dialética do sofrimento ao estar longe e submisso ao encilhamento imposto pelo autoritarismo. Passei a sentir um forte alívio combinado com uma grande angústia alimentada pelo massacrante sentimento do exílio e de ser um desenraizado.

Um final de tarde no Café Cluny, em St. Germain-des-Près, infelicitado, deu-me a clara percepção de que o meu chão era o da Paraíba e não me seduziria ser colonizado, menos ainda aculturado. As graves circunstâncias políticas impuseram evadir-me para longe da terra. Do além-mar iria algum dia voltar. Entendi que umbilicalmente era paraibano.

A diáspora parisiense me fez ver que o sofrimento tem virtudes dialéticas e pode haver um enorme aprendizado com a dor. O tempo, este pode, pari passu, se alternar, fazendo também fluir o prazer e a alegria de viver. Aprendi que o frio e o calor e os duros invernos andam de mãos dadas com as primaveras.

Passados 52 anos, nada diminuiu minha gratidão à grandeza de sempre de Paris e da França,  a “plaque tournante” dos exilados, dos apátridas, dos desenraizados. Ali fui também acolhido.

Em Paris, eu vi e vivi quase tudo. O amor e o desamor. A alegria e a tristeza. A paz e a desolação. A exclusão e a solidariedade. A distância e a intimidade. O respeito e a agressão. A grandiosidade e a estreiteza. O olhar e a cegueira. Os pesadelos e os sonhos. O bem e o mal. O mundo se descortinou. A juventude desabrochou. A maturidade colheu flores. Amores lindos e findos.

Paris nunca seria a minha terra, mas o lugar do acolhimento, da cultura, da inteligência e do saber. Lá, aprendi a intensidade dos princípios humanos e a louvar a retórica da humanidade pela grandeza dos sentimentos universais: Liberdade, Igualdade e Fraternidade.

Hoje, mais do que nunca, fica a sensação de que, mesmo tendo saído do exílio, Paris nunca me deixou. Ficou tatuada para sempre na minha memória. Dela me despedi há décadas. Em Outubro de 69, a última vez que vi Paris. Dieu Merci.