São 3.35h da madrugada, e subitamente me acordo açoitado por uma reflexão que me conduz até o grande humanista Don Miguel de Unamuno, que de Salamanca com humildade ensinou ao mundo.
Um dia lhe perguntaram: “O que lhe parece Anatole France? (o cético Prêmio Nobel que escreveu a ‘Revolta dos Anjos’). E Don Miguel, como um touro Miúra, andaluz, possante e feroz, avança sobre o seu interlocutor: “ Non me gusta Anatole France. É um homem que não sabe se indignar…”.
Indignação, supremo sentimento aos comuns dos mortais, hoje, em via de extinção na conduta humana atual. Estar pasmo, perplexo, convulso diante dos fatos que nos atormentam, pequenos ou grandes incidentes que desafiam a nossa consciente e silente indignação.
Perdi o sono, pensando em D. Miguel, quando foi agredido publicamente – ao dissertar sobre as virtudes humanas – pelo fascista espanhol General Millán-Astray, que vociferou: “Abajo la inteligência! Viva la Muerte!”. Ao que Unamuno respondeu: “Todos me conhecem e sabem que sou incapaz de me calar”.
Todos os dias somos uma plateia inerte, estoica, insensível às condutas públicas inspiradas na perversidade bolsonariana: saiam, vivam, trabalhem e se matem. Suprema perversão. Morre também a indignação pela não palavra, e o não dito tão caro ao pensamento lacaniano.
Diógenes, o filosofo cínico, adoraria viver nos dias atuais, onde teria fartos argumentos para ampliar o seu sentimento de desprezo à humanidade pela ausência da moralidade e da ética.
Homiziados no silêncio estão nossos magistrados, juízes e promotores, que sob o pálio da pandemia se eximem de suas importantes funções. Quantas milhões de pessoas precisam de amparo judicial para conter a violência das injustiças cotidianas e não ultrapassam os batentes do Judiciário. Ninguém sabe, ninguém os vê. Aderiram à tecnologia das nuvens.
Silentes estão igualmente as nossas famílias e amigos que se revelam arredios e embrutecidos pela distância. Nem sempre atentos e afetuosos aos pressurosos apelos dos que confiam as suas esperanças nas metálicas e frias mensagens de WhatsApp.
Quantos dos nossos interlocutores familiares e amigos aderem às perversidades online ao fazerem de conta que não receberam as mensagens desovadas pelo zap? A tecnologia possibilita o silêncio, via a muda simbologia que indica comunicações não recebidas.
Quantos dos nossos se refugiam nestes desprezíveis comportamentos que hoje se balizam no silêncio? Quantos de nós não sabem distinguir a diferença entre um mail e um zap? Quantos se escudam na mais absurda simbologia do não recebido? Cinicamente, muitos silenciam deixando os interlocutores atônitos diante de um mísero silêncio.
A comunicação é um processo enriquecedor: envolve ouvir e responder. No mundo online sem olhar clínico da presença deveria assim ser: aproximar, e não o é.
No cenário nacional não existe apenas o aterrorizante vírus. Precisamos igualmente de vacinas profiláticas contra a não indignação, a perversidade, e a insanidade do desrespeito humano.
O distanciamento profilático é uma coisa indispensável, a mudez e a dissimulação da não comunicação assemelha-se à perversidade com os semelhantes.
O ser online é um meio eficiente de embrutecer. É um protocolo que dissemina o vírus da indignação. Aulas de modo remoto é quase sempre um desastre pela ineficiência. Uma tela fria com dezenas de alunos que nos incomodam pelo silêncio sepulcral e ensurdecedor, favorecendo a gazeta tecnológica.
Os alunos se evaporam sem nenhuma decência em desrespeito à liturgia de uma sala de aula. Nossos alunos se calam, mas não aprendem sequer a ouvir. O silêncio passa a ser tudo e logo eles não são, talvez nunca serão nada sem a tecnologia e seus algoritmos.
O mundo e a nossa sociedade estão pelo avesso, de cabeça para baixo. Resta apenas a indignação e a consciência crítica do que já não somos. A evitar a morte na alma, já que o vírus nos consome a vida.
- Francisco Barreto é escritor, economista e Professor de Direito da UFPB
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- Ilustração: O ator Karra Elejalde interpreta Miguel de Unamuno no filme Mientras dure la guerra (Alejandro Amenábar, 2019): cena da abertura de um curso em 1936, na Universidade de Salamanca (Imagem Teresa Isasi/Divulgação, copiada da Revista Continente)