Teve todos os dias da vida entre seu nascimento e morte na consagração de suas raízes negras dedicadas ao Brasil. Há mais de 60 anos importantes lembranças da minha vida infante da Copa de 58 vêm à tona.
Ainda criança senti a angustia e o prazer ao estar ao lado de um radinho ouvindo as façanhas de seleção brasileira na Suécia. Durante as emissões éramos muitos. Agoniados ouvíamos as emocionadas narrações dos radialistas que dominavam nós ouvintes nas ondas curtas de inúmeras rádios, a Nacional, Guaíba, Mayrink Veiga dentre outras.
O que está acontecendo? Pelé está na área? As sonoras respostas vagas e reprimidas, e só entendidas com os estridentes gritos de gols e Pelé era um dos nossos heróis. A bola transitava com tanta velocidade que era impossível ter qualquer precisa imagem. A inquietação era a de saber se Pelé e Garrincha estavam no ataque.
Basicamente nos contentávamos delirar com os gols da seleção que brilhava. Para Pelé não foi difícil se distinguir entre tantos craques: Didi, Vavá, Garrincha, Nilton Santos; Zito, Zagallo, Mazolla, sem esquecer Gilmar. Vicente Feola ao lado Aymoré Moreira comandava os meninos.
De longe, Pelé foi o brasileiro que mais abraçou e divulgou para o mundo o ser da alma brasileira. Ele que veio nos históricos rastros da maior chaga que sempre desonrou a formação nacional: a escrava negritude. Com seus irradiantes e generosos sorrisos tão característicos a toda a raça negra ele inundou o país com a sua alma livre e generosa que o sacralizou.
A sua imagem rompeu o tempo, veio de uma época em que a alegria dominava o Brasil, a Democracia, Kubistchek, Brasília, a Bossa Nova, o Cinema Novo, o nosso futebol. Era uma feliz outra era.
Pelé passou a ser a imagem mais definida do Brasil. Era “esférico”, ou seja, por onde o víssemos ele era muito bom. Humilde, carismático, generoso, artista, feliz, icônico, encarnava os trópicos lindos e felizes.
Durante alguns anos em que estive fora do Brasil, quando éramos indagados sobre as nossas nacionalidades, e respondíamos: Pelé. E o Brasil vinha então pela gravidade do prazer. Evitávamos nos sinalizar como brasileiros em repúdio aberto a então ditadura brasileira.
Em 1970, tínhamos um grave conflito político aberto por razões ideológicas e humanas. A Copa nos atemorizava ao termos que nos curvar e exultar as cores verde e amarela. As emoções nos atraiçoavam e não impediram de ver todos os jogos. Pelé nos cegou e abrandou pela sua genialidade. Adorávamos a seleção, detestávamos o Brasil dos militares. Nos curvamos à profunda brasilidade futebolística que nos impunha o prazer e nos reduzia a um estado de letargia ideológica.
Pelé e sua trupe temporariamente nos esterilizaram politicamente. Fomos felizes por alguns dias. Depois mergulhamos no submundo do exílio. Num choque ideológico desfeito retomávamos a nossa contestação à Ditadura fazendo faixas, pichações, cartazes nos prédios, sobretudo na Cité Internacional Universitaire, e nos imóveis da Sorbonne: “Brésil, Champion Mondial de la Torture”.
Mas a vitória do tricampeonato ficou tatuada na alma. Lembro que em meados de Julho de 70 fui a Roma, e durante o trajeto fomos abordados pelo controle fronteiriço e alfandegário e arguidos pelo oficial fiscal: Nationallitá: Passaportes! Respondíamos em coro: Quatro a Uno! Palavrões foram pronunciados, os quais, que só eles os italianos os dizem com agradável e sonoridade embora insultantes: Porca Madonna!
Hoje o que mais me comove é sentir que Pelé foi e será sempre a representação mais legítima de um Brasil negro. Veio do nada e com recursos pauperizados do futebol se impôs e transmitiu ao mundo a honra, a grandeza de ser um gênio da raça negra brasileira e mundial. Não foi apenas um ícone futebolista. Muito além se curvando à sua negritude mostrou a dignidade e o esplendor de suas origens que em séculos foi sepultada pelo escravismo e pelo racismo indigno.
Assim vejo Pelé encarnado na sua negritude e na grandeza de sua raça liderando na condição do mais importante estimado brasileiro de todos os tempos no mundo.
O Brasil e seus brasileiros têm o dever se curvar pela remissão de seus históricos e atuais preconceituosos pecados se declararem humildes e convictos que o Negro Pelé é um dos gênios da nossa Nacionalidade.