E O VENTO LEVOU, por Frutuoso Chaves

Acordei com uma saudade sem tamanho daqueles cartazes atados aos troncos de fícus na cidade aonde cheguei antes do primeiro aniversário e de onde saí aos quinze anos de idade.

As árvores de copas redondas, aparadinhas, em filas nos dois lados da rua, davam sombra para astros e estrelas de metade do mundo. Mas era quando abrigavam Buck Jones, Bill Elliott, Hopalong Cassidy e Roy Rogers que elas, de fato, me atraiam.

Dois cavaletes, não mais do que isso, exibiam de seis a oito reproduções fotográficas de galãs, divas ou cowboys, estes últimos com seus cavalos e seus revólveres. E ambos eram itinerantes: viajavam de tronco em tronco desde a frente dos Correios até a da Prefeitura. Um para anunciar o filme do momento e, outro, para o do dia seguinte.

Certa vez, ajudei o menino Jiló, três anos mais velho do que eu, nesses transportes. A tarefa seria bem fácil se o vento não teimasse em nos arrancar aquilo das mãos. Por conta da ventania é que os cavaletes – duas armações com superfície de madeira fina – precisavam de amarras aos pés de fícus. Nada, porém, que uns poucos metros de barbante não resolvessem.

Mocinhos ou bandidos, mesmo que fossem de carne e osso, não conseguiriam escapar daquele cordel feito no Cariri na época em que as fibras sintéticas americanas ainda não haviam rebaixado o agave nordestino, produto que então ocupava lugar de honra na pauta das nossas exportações.

Naqueles dias, brochas com a espessura dos alfinetes, mas com cabeças largas, prendiam as fotos nos quadros dotados de pernas e, assim, com a parte inferior meio metro acima do chão, sobretudo, em seu dia de maior sujeira, o sábado das feiras livres. Dia, também, de maior público. É que um pequeno grupo de feirantes, provindo dos sítios e pés de serra, costumava retornar à rua, à noite, para o cinema.

Cinema… Pois sim. Aquilo não passava da mera projeção de filmes num dos compartimentos do Mercado Público para onde se podia levar tamboretes, ou sentar em bancos de feira.

Os comparecimentos de mães e irmãs requereriam, sempre que ocorressem, o uso das cadeiras domésticas. Então, seria bom chegar mais cedo em busca das primeiras filas, arrumar tudo com o acesso ainda livre, esperar com os amigos na praça o fechamento do recinto e o subsequente funcionamento da bilheteria para daí retomar os assentos. Diga-se que ninguém ocupava o lugar de ninguém, pois todos conheciam as cadeiras de casa, aquelas do café da manhã, do almoço e da janta.

A trabalheira tinha suas vantagens: você de antemão saberia quem iria ter ao lado. Teria, também, a oportunidade de evitar essa companhia, se não a desejasse. Tivesse idade para o namoro, sentaria ao lado da menina, ou do menino, juntando os assentos, uma ou duas horas antes, sem que os pais de nada suspeitassem.

Foi não foi, eu me apiedo dos jovens. É sentimento que me assalta, de modo mais forte, quando falo dessas coisas aos três filhos e ao único neto que o primeiro deles me deu. Percebo, nessas ocasiões, a inveja em cada olhar.

Agora, preciso confessar o suborno que fez um amigo fechar os olhos e a boca quando subtraí o retrato de Roy Rogers com Dale Evans e o parceiro George “Gabby” Rayes, o velhote leal, mas sempre atrapalhado deste e de outros cowboys. Comprei um silêncio com dois pães doces da Padaria de Seu Juca, meu pai.

O vento levou. Assim poderia entender do sumiço dessa foto Seu Zé Ribeiro, o projecionista, o dono das velhas máquinas Bell and Howell e Pathé, o cinemeiro que pegava o trem para Recife na manhã de toda quarta-feira para dali voltar à noite com os filmes do sábado e do domingo obtidos dos escritórios da Metro, RCA e outras distribuidoras.

Apropriei-me do mocinho, da mocinha e do doidinho, os três juntos, cheek to cheek, naquele quadro 5×9 em papel fotográfico mesmo. Aquilo, sem dúvida, fora feito para mim. Só faltavam os autógrafos. Fosse eu levado a juízo, um advogado alegaria privação dos sentidos em virtude da paixão avassaladora de um pirralho de doze anos por aquele trio e o juiz me abrandaria a pena. Seu Juca, seguramente, não.

Perto de 1960, Seu Zé faria o pequeno Cine Ideal, tijolo por tijolo e cadeira por cadeira, sozinho, não fosse a ajuda precária de Jiló, para fechá-lo dois anos depois, quando a televisão começava a matar as salas de exibição do interior e as dos bairros nas Capitais. Até aí, Jiló teve, para mim e meus parceiros, o melhor emprego do mundo. O finado José Augusto de Brito, coletor de renda e professor dos meninos do meu tempo, tinha aquela dupla como “Dom Quixote e Sancho Pança”. De certa forma, aqueles dois assim o foram.

Mexem mais com minhas saudades, até pelo tempo da convivência, as projeções do Mercado Público em tela de brancura acentuada pelo pó da farinha de mandioca vendida, então, em ambiente distante do açougue com seu cheiro de peixe e carne crua.

Ali, quando os cowboys, seus sopapos e tiros começaram a me aborrecer, eu tive o sentido desperto para os filmes de romance e para o perfume daquela garota que riu de mim tanto quanto ríamos do doidinho de Roy Rogers. Nunca entendi por que ela buscava minha companhia na Praça da Matriz até Seu Zé Ribeiro suspender a difusão de músicas e nos chamar para as sessões de cinema por alto-falante do tipo trombeta afixado na fachada do Mercado. Mas este é um tema para filmes de outro gênero.

Meu Deus, como tudo isso me faz falta!

E OS BURROS NÃO SE ENTENDERAM, por Jesus Fonseca

Imagem copiada de El País

No meu tempo de criança, quando minha família morava em Misericórdia, hoje Itaporanga, na Rua 5 de Agosto, havia quase em frente de nossa casa dois pés de ficus benjamina, conhecido mais como pé de figo. As árvores ficavam em frente à casa vizinha.

Naquela época, o Ficus ou Pé de Figo era a árvore que arborizava nossa cidade. Frondosa, propiciava muita sombra. Essas duas, que assistiam a nossa infância, distavam uns oito metros uma da outra, com suas copas entrelaçadas fornecendo-nos sombra até o meio da rua.

O terreno de terra batida, recebendo a sombra protetora, era o palco de nossas brincadeiras – batalha de caco de telha enterrado no chão, jogo de castanha, de bolinha de gude, amaré, peteca e muitos outros. Entretanto, a molecada se comprazia, às vezes, com outra, digamos assim, inusitada. Urinar num formigueiro! Perto do tronco de uma das árvores havia um cujos habitantes eram as destruidoras formigas de roça.

Durante o dia, se ninguém viesse incomodá-las, viam-se três ou quatro formiguinhas entrando e saindo daquele pequeno orifício na terra. Quando a meninada fazia sua traquinagem, urinando na entrada do formigueiro, num espaço curto de tempo, cinco segundos no máximo, um espetáculo impressionante acontecia! Centenas de formigas endemoniadas surgiam na boca do formigueiro e se espalhavam rapidamente, procurando picar o seu agressor.

A gritaria se fazia presente, cada um se afastando como podia das formigas embravecidas. Algumas vezes, um menino desprevenido sofria a sanha dos insetos. Gritos, choros e lamentos do desditado, risadas e gozações dos demais. E lá se foram os bons tempos de nossa 5 de Agosto. Não tínhamos a parafernália eletrônica de hoje, mas éramos felizes com nossos ”rudes” brinquedos, frutos de nossa imaginação.

Jamais meu cérebro me presentearia com o fruto destas recordações, se não fosse o desalento, a aflição enfurecida, em não saber o que fazer, daquela garotada, vendo seu espaço de lazer invadido por Otacílio de João Crizanto, como era conhecido, que aparentava ser pessoa de boa índole, risonho, brincalhão nos seus 22 ou 23 anos de idade. Morava no sítio Cajazeiras, propriedade dos Crizanto, daí o epíteto como era conhecido.

Vinha à cidade geralmente aos sábados, conduzindo, às vezes, um burro de carga, ocasião em que amarrava o animal num daqueles pés de figo, citados parágrafo acima. Devo dizer que, aos sábados e domingos, a meninada não se utilizava das sombras benfazejas das frondosas árvores, para seus folguedos semanais. Por que? Não sei explicar! Talvez em função da feira que acontecia naquele dia, lá em Misericórdia.

Contudo, me reporto aqui a um dia da semana, quando a molecada se comprazia com seus brinquedos embaixo das figueiras. Ignorando a criançada, Otacílio amarrou seu burro num dos pés de ‘figo’ e cheio de galhofa zombou dos meninos com chacotas – “cuidado o burro é brabo e é coiceiro!”.

Que fazer? Indefesos e privados maldosamente em suas brincadeiras, os meninos  resolveram dar o troco! Juntos, quatro ou cinco, passaram a urinar no bueiro das formigas e saírem em desabalada carreira para as calçadas em frente.

Segundos depois, o que se viu, foi um espetáculo dantesco! Centenas de formigas afloraram à boca do formigueiro em busca de seu agressor e o encontraram. O pobre do burro, atacado pelas terríveis cortadeiras, dava coice para tudo que era lado. Para cima, de lado, procurando se desvencilhar da corda que o segurava à arvore.

A garotada, nas calçadas em frente, se deleitava aos gritos com a cena.
Ouvindo a gritaria e o ronco do animal, Otacílio correu para solucionar o episódio. Ao tempo em que chegou próximo ao jegue, este conseguiu se soltar e lhe aplicou um tremendo coice saindo em desenfreada carreira, relinchando.
Restou a Otacílio, estatelado no chão com fortes dores, vociferar para garotada, a esta altura, silenciosa, talvez por medo, ante os impropérios do desditoso rapaz – “vocês não tem mãe, não, bando de ‘fi’ duma égua!”.