LENDO NO BUSÚ, por Ana Lia Almeida

Foto copiada de meuestilo.r7.com

Ao lado de Rita, um rapaz se divertia lendo um livro. Volta e meia dava umas risadinhas discretas ou parava um pouco para olhar pela janela do ônibus, pensando em algo que acabara de ler. Era um livrinho pequeno, de capa colorida, e Rita espiava com o rabo do olho para tentar alcançar um pouquinho daquilo que o rapaz parecia achar tão bom.

O moço já tinha percebido o interesse de Rita, mas fingia que não para deixá-la à vontade. Até aproximava o livro um tiquinho mais para perto dela, entre um sacolejo e outro, para que ela pudesse bisbilhotar melhor. Era um rapaz alto, bonito, cheiroso, e Rita, além do livro, também estava bastante interessada em estar perto de alguém assim.

Vinham nessa interação dissimulada há umas cinco paradas quando uma freada brusca os interrompeu. O livro, que estava nas mãos do rapaz sentado à janela do ônibus, atravessou o colo de Rita e foi parar no corredor. Ela prontamente o apanhou, passou a mão sobre a capa num gesto de zelo e, ao devolvê-lo para o dono, aproveitou para observar melhor o título: Curtinhas da Quarentena.

A senhora gosta de ler?

Rita, surpresa e acanhada, demorou uns instantes para encontrar a resposta. Ela não sabia. Contou que já tinha lido dois ou três livros quando era mocinha, antes de largar a escola para trabalhar em casa de família. O primeiro tinha bastante figura e poucas letras, então foi o que ela entendeu mais. Os outros eram grandes, por isso ela não conseguia ler de uma vez só e demorou várias semanas, às vezes se perdendo na história e tendo que voltar as páginas, o que só atrasava mais o tempo de terminar.

Isso me aperreava um pouquinho, mas, quando eu conseguia demorar mais tempo lendo, tipo meia hora direto, eu começava a gostar e não queria parar. Mas aí tinha que ajudar minha mãe na cozinha, na faxina, dar banho nos meus irmãos… E o livro ia ficando para mais tarde, quando eu já estava com muito sono e acabava dormindo de uma linha para outra. Depois que parava era difícil voltar.

E a senhora tem vontade de tentar ler de novo?

Se fosse um livrinho pequeno e fácil como esse, eu queria, porque as histórias são curtinhas e dá para ir lendo de pouquinho em pouquinho sem se perder.

Então tome esse para a senhora.

TEMPORADA DE CHUVAS ISOLADAS, por Ana Lia Almeida

Nuvens carregadas chegam ao leste do Nordeste

(Imagem copiada de folhageral.com.br)

Sabe quando uma sucessão de acontecimentos ruins chove em sua vida e, mal a pessoa seca, lá vem outro banho de água fria de novo? Parece que faz sol em toda a cidade, mas uma nuvem carregada não sai de cima da gente.

Pois está aberta a Temporada de Chuvas Isoladas por aqui. De Isolada, mesmo, só o nome, porque traz consigo a maior aglomeração. Não tem álcool em gel que dê jeito: de repente, estamos no velório de alguém querido, em uma delegacia de Polícia ou cheio de pessoas outras dentro de casa.

Primeiro veio a perda de um grande amigo. Indizíveis a tristeza e a revolta, dessas marcas que a vida vai cuidando com o tempo, bem devagarinho. Às favas com o isolamento social: foi muito abraço e pouco distância.

Poucos dias depois, a casa pegou fogo. Uma faísca elétrica ardeu o quarto da menina e em pouco tempo havia uns quinze vizinhos sem máscara arriscando a vida por nós.

Afora a fumaça, ficamos todos bem. Menos as roupinhas da dona do quarto, que queimaram todas. Em compensação, ela renovou o quarda-roupa inteiro, o que, por sua vez, nos levou ao shopping depois de 6 meses.

No mesmo dia, podem acreditar, a minha mãe foi furtada e fizeram uma festa com os cartões de crédito. Pior que o prejuízo, só mesmo o 0800 da Caixa Econômica Federal. E lá fomos nós à Central de Polícia, onde ganhamos o chuvisco-bônus da viagem perdida, voltando sem B.O. nenhum porque, você sabe, era fim de semana e ali somente flagrante com violência.

O desisolamento ainda continuará com o retorno à delegacia, a ida ao banco e a reforma do quarto incendiado. Mas esperamos de coração que a Temporada de Chuvas Isoladas tenha se encerrado. 

  • • Ana Lia Almeida é Professora e Cronista

DIAS IGUAIS, por Ana Lia Almeida

Foto copiada de novaescola.org.br (Crédito: Getty Images)

O fenômeno dos Dias Iguais, embora anterior à pandemia, parece ter se intensificado ao longo do ano de 2020. Trata-se de dormir e acordar preso aos mesmos acontecimentos, que se repetem quase sem variações perceptíveis. Duvidamos do calendário, pasmos, incrédulos de ter vivenciado dois dias diferentes. Quando damos por nós, o mês acabou sem explicações, parecendo impossível que todo esse tempo de 31 dias distintos entre si tenha sem passado.

A cozinha é a principal responsável pela estranha sensação, pois entre o café da manhã, o almoço e a janta, pouca coisa acontece de novo sobre a terra dentro de uma casa. Vejamos o caso do cuscuz: misturar um pouco d´água à massa amarela com uma pitada de sal, aguardar o descanso e deixar cozinhar por uns quinze minutos. Todo dia é o mesmo preparo, o que pode ser, logo de manhã cedo, fonte de confusão com o dia anterior.

Os jornais, com suas notícias de sempre, também em muito contribuem para a perturbação dos Dias Iguais. Variam muito pouco as péssimas notícias de um dia para o outro, embora de semana em semana tenhamos quase sempre um novo escândalo e uma nova média móvel no número de mortes, de modo que podemos passar a semana inteira praticamente presos em um dia só, considerando apenas a repetição do noticiário.

Não fosse um passarinho ou outro que aparece na janela, ora um bem-te-vi, ora um beija-flor nos lembrando que a vida segue teimosa, difícil seria acreditar que o tempo está passando de verdade.

  • Ana Lia Almeida é Cronista