E O VENTO LEVOU, por Frutuoso Chaves

Acordei com uma saudade sem tamanho daqueles cartazes atados aos troncos de fícus na cidade aonde cheguei antes do primeiro aniversário e de onde saí aos quinze anos de idade.

As árvores de copas redondas, aparadinhas, em filas nos dois lados da rua, davam sombra para astros e estrelas de metade do mundo. Mas era quando abrigavam Buck Jones, Bill Elliott, Hopalong Cassidy e Roy Rogers que elas, de fato, me atraiam.

Dois cavaletes, não mais do que isso, exibiam de seis a oito reproduções fotográficas de galãs, divas ou cowboys, estes últimos com seus cavalos e seus revólveres. E ambos eram itinerantes: viajavam de tronco em tronco desde a frente dos Correios até a da Prefeitura. Um para anunciar o filme do momento e, outro, para o do dia seguinte.

Certa vez, ajudei o menino Jiló, três anos mais velho do que eu, nesses transportes. A tarefa seria bem fácil se o vento não teimasse em nos arrancar aquilo das mãos. Por conta da ventania é que os cavaletes – duas armações com superfície de madeira fina – precisavam de amarras aos pés de fícus. Nada, porém, que uns poucos metros de barbante não resolvessem.

Mocinhos ou bandidos, mesmo que fossem de carne e osso, não conseguiriam escapar daquele cordel feito no Cariri na época em que as fibras sintéticas americanas ainda não haviam rebaixado o agave nordestino, produto que então ocupava lugar de honra na pauta das nossas exportações.

Naqueles dias, brochas com a espessura dos alfinetes, mas com cabeças largas, prendiam as fotos nos quadros dotados de pernas e, assim, com a parte inferior meio metro acima do chão, sobretudo, em seu dia de maior sujeira, o sábado das feiras livres. Dia, também, de maior público. É que um pequeno grupo de feirantes, provindo dos sítios e pés de serra, costumava retornar à rua, à noite, para o cinema.

Cinema… Pois sim. Aquilo não passava da mera projeção de filmes num dos compartimentos do Mercado Público para onde se podia levar tamboretes, ou sentar em bancos de feira.

Os comparecimentos de mães e irmãs requereriam, sempre que ocorressem, o uso das cadeiras domésticas. Então, seria bom chegar mais cedo em busca das primeiras filas, arrumar tudo com o acesso ainda livre, esperar com os amigos na praça o fechamento do recinto e o subsequente funcionamento da bilheteria para daí retomar os assentos. Diga-se que ninguém ocupava o lugar de ninguém, pois todos conheciam as cadeiras de casa, aquelas do café da manhã, do almoço e da janta.

A trabalheira tinha suas vantagens: você de antemão saberia quem iria ter ao lado. Teria, também, a oportunidade de evitar essa companhia, se não a desejasse. Tivesse idade para o namoro, sentaria ao lado da menina, ou do menino, juntando os assentos, uma ou duas horas antes, sem que os pais de nada suspeitassem.

Foi não foi, eu me apiedo dos jovens. É sentimento que me assalta, de modo mais forte, quando falo dessas coisas aos três filhos e ao único neto que o primeiro deles me deu. Percebo, nessas ocasiões, a inveja em cada olhar.

Agora, preciso confessar o suborno que fez um amigo fechar os olhos e a boca quando subtraí o retrato de Roy Rogers com Dale Evans e o parceiro George “Gabby” Rayes, o velhote leal, mas sempre atrapalhado deste e de outros cowboys. Comprei um silêncio com dois pães doces da Padaria de Seu Juca, meu pai.

O vento levou. Assim poderia entender do sumiço dessa foto Seu Zé Ribeiro, o projecionista, o dono das velhas máquinas Bell and Howell e Pathé, o cinemeiro que pegava o trem para Recife na manhã de toda quarta-feira para dali voltar à noite com os filmes do sábado e do domingo obtidos dos escritórios da Metro, RCA e outras distribuidoras.

Apropriei-me do mocinho, da mocinha e do doidinho, os três juntos, cheek to cheek, naquele quadro 5×9 em papel fotográfico mesmo. Aquilo, sem dúvida, fora feito para mim. Só faltavam os autógrafos. Fosse eu levado a juízo, um advogado alegaria privação dos sentidos em virtude da paixão avassaladora de um pirralho de doze anos por aquele trio e o juiz me abrandaria a pena. Seu Juca, seguramente, não.

Perto de 1960, Seu Zé faria o pequeno Cine Ideal, tijolo por tijolo e cadeira por cadeira, sozinho, não fosse a ajuda precária de Jiló, para fechá-lo dois anos depois, quando a televisão começava a matar as salas de exibição do interior e as dos bairros nas Capitais. Até aí, Jiló teve, para mim e meus parceiros, o melhor emprego do mundo. O finado José Augusto de Brito, coletor de renda e professor dos meninos do meu tempo, tinha aquela dupla como “Dom Quixote e Sancho Pança”. De certa forma, aqueles dois assim o foram.

Mexem mais com minhas saudades, até pelo tempo da convivência, as projeções do Mercado Público em tela de brancura acentuada pelo pó da farinha de mandioca vendida, então, em ambiente distante do açougue com seu cheiro de peixe e carne crua.

Ali, quando os cowboys, seus sopapos e tiros começaram a me aborrecer, eu tive o sentido desperto para os filmes de romance e para o perfume daquela garota que riu de mim tanto quanto ríamos do doidinho de Roy Rogers. Nunca entendi por que ela buscava minha companhia na Praça da Matriz até Seu Zé Ribeiro suspender a difusão de músicas e nos chamar para as sessões de cinema por alto-falante do tipo trombeta afixado na fachada do Mercado. Mas este é um tema para filmes de outro gênero.

Meu Deus, como tudo isso me faz falta!

O GRANDE KILAPY, por Frutuoso Chaves

Cena de ‘O Grande Kilapy’ (Imagem: YouTube)

A grade de programação do Canal Arts & Entertaimment, da NET, traz “O Grande Kilapy”, filme saboroso de Zezé Gamboa, homem que se tornou a mais importante referência do cinema angolano.

A narrativa fluida, segura, tem encanto especial para o público paraibano, em razão de passagens pela orla e prédios que assinalam a diversidade arquitetônica de João Pessoa. Chamam, particularmente, a atenção dos que moram, ou conhecem a cidade, as cenas tomadas diante da antiga sede dos Correios e Telégrafos e do Liceu Paraibano, prontamente reconhecidos.

Conta-se que Zezé Gamboa tomou-se de amores pela Capital da Paraíba ao participar da quarta edição do Cineport, o Festival de Cinema de Países de Língua Portuguesa aqui abrigado.

Ele teria enxergado grande semelhança da paisagem urbana local com a Luanda dos últimos anos da colonização portuguesa, onde parte do enredo transcorre. Os tratos com a Prefeitura Municipal iniciaram-se em meados de 1999 e, um ano depois, o pessoense deparava-se com as filmagens das quais participavam atores do quilate de Lázaro Ramos (com o papel principal), Antonio Pitanga, Maria Ceiça e nomes europeus a exemplo de Manuel Wiborg, Sílvia Rizzo, Filipe Crawford e Alberto Magassela, este último um ator moçambicano radicado em Lisboa.

Lázaro encarna “Joãozinho”, amante das noites e das mulheres, um boa-vida transformado em herói e retirado da prisão (com a libertação de Angola) para onde fora levado em razão de subtrações do Banco Nacional a serviço de amigos revolucionários, mas, sobretudo, como bom malandro, em proveito pessoal.

Ficcional, o enredo é um tanto anárquico. Começa num terraço de Lisboa, onde um amigo, provocado sobre o assunto, relembra as peripécias de Joãozinho. Ficção à parte, há artigos acadêmicos nos quais o filme é citado por incorporar aspectos desprezados da memória coletiva relacionada à colonização portuguesa.

O espanto ante o envolvimento amoroso de um negro com mulheres brancas e o inconformismo com a boa situação econômica de Joãozinho, ou seja, o racismo, ali emerge por trás da atuação da Polícia Política portuguesa.

O termo “kilapy” – está em todas as resenhas deste que é o segundo longa-metragem de Zezé Gamboa – vem da língua kimbundu e significa “golpe”, “tramoia”. Premiado em festivais sucessivos, o filme tem enredo palatável, ágil, resultante da sucessão de tomadas curtas. Mesmo nos momentos de maior dramaticidade, não há diálogos demorados, enfadonhos. Vale a pena vê-lo, ou revê-lo.

O SÃO LUIZ, por Frutuoso Chaves

O Cinema São Luiz resiste (Foto: Reprodução/Divulgação)

Durante a infância, no interior, todos os seus amigos o tratavam por Cláudio, o nome de batismo. Em João Pessoa, naqueles começos de 1960, ele era conhecido por Marcelino, apelido adquirido da semelhança impressionante com o ator mirim Pablito Calvo. Este último se fizera mundialmente conhecido pelo filme “Marcelino, Pão e Vinho”, a história comovente do órfão criado por frades católicos, em plena revolução mexicana.

Depois de um ataque brutal à aldeia, o pirralho refugia-se no sótão do velho mosteiro, onde é atraído por uma imagem de Cristo. Em sua inocência, acha que a estátua padece de fome, oferece a ela pão e vinho e a descobre viva e amorosa.

Pois bem, Cristo não opera, ali, somente, o milagre da transmutação. Além disso, atende ao menino em seu mais profundo desejo: o reencontro com a mãe. Gerações choraram com este filme do diretor Ladislau Vajda baseado, dizem, numa história real.

Ressalte-se, porém, que de Marcelino, o menino Cláudio, um capeta de carne e osso, só tinha a incrível aparência. De resto, levou os malfeitos para a vida adulta. O alcoolismo frustrou, no nascedouro, sua carreira de jogador de futebol (o Botafogo o queria) e, igualmente, a de bancário. Mas, justiça seja feita, nunca prejudicou alguém, além de si próprio. A cirrose o apanhou, sem dó nem piedade, antes que fizesse os 40 anos.

Essa, porém, é outra história. Importa, agora, saber que foi para ver um filme de Cantinflas, também mexicano, que eu, um menino recém-chegado a João Pessoa, me acompanhei de Cláudio até a bilheteria do Cine Plaza, no Ponto de Cem Réis. Tínhamos os dois a mesma origem e ele tratou de me advertir: “Não vá dar uma de matuto. Isso não é aquela porcaria de sala do Seu Zé Ribeiro. A tela, aqui, é cinemascope. Cabe nela aquele cineminha inteiro”.

Se não cabia, era por questão de poucos metros. Mas, mesmo assim, não deixei de me espantar com o que vi depois de ingressar no ambiente escuro e acarpetado. O espanto, porém, tinha razão contrária à suposta pelo meu amigo. Aquilo não amarrava a chuteira do Cine São Luiz, no Recife, cidade onde morei, por algum tempo, com uma tia. Ele, sim, não sabia o que era cinema.

Até os dias de hoje, nada me impressionou tanto, nem tão bem, quanto os vitrais, os detalhes do teto e das paredes, em suma, o ambiente requintado e enorme do cinema recifense inaugurado em 1952 para integrar o conjunto das muitas salas do Grupo Severiano Ribeiro.

Levado pelas mãos do querido Tio Nerges à calçada da Rua da Aurora, também tomei, ali, aos 9 ou 10 anos de idade, minha primeira Coca-Cola. A este, sim, devo ter envergonhado por dois motivos: um arroto pelo nariz que quase me mata e o olhar espantado quando entrei numa das mais belas salas de exibição do País. O impacto daquilo tudo na minha alma de menino nunca mais se reproduziu nas fases seguintes da vida, mesmo que a profissão abraçada tenha me conduzido, vez por outra, a governantes em seus palácios e a salões.

Não entro no São Luiz há décadas. Mas sou informado de que ainda está em operação num mundo onde novas circunstâncias e novos costumes mataram os cinemas de rua. Em João Pessoa, por exemplo, eles apenas existem nos shopping centers, menores e acanhados, porém, mais fáceis de limpar e refrigerar. Também, mais seguros, porquanto os pátios de estacionamento exigem, eles mesmos, bilheterias.

O amigo Cláudio viveu entre nós o suficiente para ver a morte do Felipeia, Plaza, Rex, Municipal e Brasil (no centro comercial), Torre e Metrópole (no bairro da Torre), Jaguaribe, São José e Santo Antonio (em Jaguaribe), Glória e Bela Vista (em Cruz das Armas), apenas para citar aqueles dos quais me lembro.

PELOS COTOVELOS, por Frutuoso Chaves

Fortino Mario Alfonso Moreno Reyes. Sabem não? Então, vamos encurtar: Cantinflas (foto). Isso mesmo, aquela metralhadora verbal que encantava o público do cinema em partes diversas do mundo. O mexicano que saiu da extrema pobreza para a fama quase universal.

Lembrei dele ao me deparar, há pouco, com a informação de que seu nome está dicionarizado. Aparece no Dicionário da Real Academia Española para definir “pessoa que fala, ou atua, de maneira disparatada, incongruente e sem nada dizer com substância”.

Cantinflas, de fato, falava pelas tripas do Judas para pouco ou nada dizer. Era justamente isso o que provocava as gargalhadas dos falantes de espanhol e português. Mas foi, infelizmente, o que o afastou da maior parte do público nos Estados Unidos e Europa, dada sua complexa tradução.

Falar pelos cotovelos, portar bigode esquisito, usar camisa de malha colada e calças frouxas à altura da virilha e, ainda, cultivar manias e trejeitos engraçadíssimos, tudo isso junto compunha a figura que sucessivas gerações adoravam, sobretudo, as de alma e sangue latinos.

Mas até que esse moço fez bonito na Meca do Cinema. Sua atuação em “A Volta ao Mundo em 80 Dias” rendeu-lhe o Golden Goble Award para Melhor Ator. Este filme, aliás, abiscoitou o Oscar de 1956. Cantinflas ali contracenou com astros e estrelas a exemplo de Shirley MacLaine, David Niven, Charles Boyer, Marlene Dietrich, Trevor Howard e Frank Sinatra. É mole?

Nascido num reduto pobre da Cidade do México, em 1911, ele teve que trabalhar muito cedo como engraxate, aprendiz de toureiro, motorista de táxi e pugilista até o dia em que teve a oportunidade de substituir, de última hora, o apresentador de um espetáculo mambembe que adoecera. Pronto, havia descoberto a forma de dar certo na vida.

Produziu, ele mesmo, a maioria dos mais de 40 dos seus filmes, porquanto tratou de montar a própria companhia. Morreu em abril de 1993. Tomei conhecimento de sua existência, mal chegado em João Pessoa, ao comprar ingresso para “Pepe”, o segundo filme em que atuou nos Estados Unidos e um fracasso de crítica e bilheteria. Depois, me vieram, não necessariamente nessa ordem, “O Circo”, “Os Três Mosqueteiros”, “Nem Sangue Nem Areia”, “O Sabichão”, “O Analfabeto” e por aí vai…

O HOMEM DE CELULOIDE, por José Mário Espínola

Andrés e o filme que vai exibir e comentar hoje no Liv Mall, em João Pessoa

O tipo impressiona. Sujeito alto, boa compleição, louro de olhos azuis. E uma voz tronituante, de muita personalidade. Associados ao seu jeito carismático, isso faz com que nunca passe despercebido por onde anda.

Cultura fabulosa, vem dedicando toda a sua vida ao cinema. Literalmente: passa a maior parte do tempo dentro das salas de projeção, saindo de uma para entrar noutra, pois a Sétima Arte é o seu ofício.

Assiste a um filme com olhos profissionais, analisando já a partir da composição da platéia, desde a bilheteria. Semelhante a um bom sommelier, degusta cada filme saboreando todos os detalhes: câmera, direção, fotografia, atuações, trilha sonora, enredo, composição da platéia. E ao final dá a sua nota. Como um crítico rigoroso, dificilmente dá uma nota 10.

Exibe para a sua grande platéia, espalhada pelos cineclubes do Brasil, os melhores filmes da atualidade. Assim como outros lançados no passado, sempre excelentes películas. Não gosta do cinema brasileiro, e é fã declarado do cinema argentino, que diz ser um dos melhores o mundo.

Como um mestre de sala, comanda seus grupos com mão de ferro, exigindo que se limitem ao tema cinema, excluindo os recalcitrantes, após terem sido advertidos. Pois às vezes se comporta como um professor rigoroso, enquadrando aqueles alunos que esquecem as boas maneiras na sala de aula. Mas, assim como toda classe de colégio tradicional tem um mestre severo, também sempre tem um aluno travesso, o qual forma um binômio com o professor, que resulta sempre em boa amizade.

Fidalgo, possuidor de gosto exigente, como bom gourmet ele aprecia pratos sofisticados, sempre acompanhados de vinhos finos. Monarquista, respeita a democracia e abomina extremismos, tanto de direita quanto de esquerda. Como todo príncipe, ele tem a sua corte, com composição semelhante às dos nobres da Renascença. Tem de tudo que é personagem.

Nas suas apresentações, às vezes ele se entusiasma e escorrega na linguagem, deixando a platéia corada. Mas é o seu estilo, o seu valor é maior do que a boca candidata ao sabão.

Em alguns momentos tenta ser rigoroso, brabo mesmo. Porém, na realidade ele tem um coração de chantilly. Sempre muito solidário e preocupado com as pessoas, eu acho que ele é, na realidade, um socialista enrustido. E dos bons!

Enfim, este é Andrés Von Dessauer, o nosso mestre de cinema. Tem nome de príncipe bávaro, nasceu chileno e é brasileiro por adoção. Andrés hoje é cidadão do mundo. Ora nos parece um barão prussiano. Ou um conde do País de Gales. Ou um príncipe degredado. Já estudou até na Alemanha, onde teve a oportunidade de conhecer a Rainha Elizabeth II, recém-falecida.

Já trabalhou em muito países, mas escolheu o Brasil como lar. É possuidor do melhor museu de arte erótica da Paraíba, em cuja calçada encontramos um jacaré gigante, feito de cimento, que ele trouxe sabe lá de onde, e sabe lá como. E que crianças e pessoas simples pensam ser real.

Considerando a sua boa saúde, a excelente forma física, a sua resistência incrível que o leva a suportar maratonas de filmes, em cidades como João Pessoa, São Paulo e Rio de Janeiro, nas quais é muito conhecido, e levando em consideração a sua afinidade com o cinema, cheguei à conclusão de que Andrés não é feito de tecido humano: ele é feito de celulóide, o mesmo material dos filmes cinematográficos acomodados em rolos, para serem exibidos nos cinemas.
***
Esse é, portanto, o nosso príncipe bávaro. Por tudo isso é que ergo um brinde para o nosso grande mestre, Andrés Von Dersauer, com champagne Veuve Clicquot, brût: longa vida ao príncipe!

CINEMA ENGENHO, por Frutuoso Chaves

Cena de ‘Cinema Engenho’ (copiada de curtadoc.tv)

Acabo de rever “Cinema Engenho”, o curta-metragem dirigido por Dácia Pitangui, uma piauiense com graduação em Engenharia, mestrado em Comunicação e especialização na Escola Internacional de Cinema e Televisão de San Antonio de los Baños, Cuba.

Professora, também, da Universidade de Brasília, Dácia esteve em Pilar, em 2006, para concluir seu documentário sobre o premiadíssimo cineasta paraibano Vladimir Carvalho que, na ocasião, realizava as filmagens de “O Engenho de José Lins”. Ali, conheceu outra figura que a encantou: Seu Zé Ribeiro, homem de poucas letras e origem campesina cuja paixão pelo cinema o levou não apenas a projetar filmes em praças e mercados públicos, mas, ainda, a construir seu próprio prédio, tijolo por tjjolo, cadeira por cadeira.

Particularmente, devo ao Seu Zé o gosto pela Sétima Arte, assim tida e havida. Menino, eu costumava aguardar seu retorno, às quartas-feiras, do Recife, para onde ele seguia de trem a fim de encomendar nos escritórios da Fox, RCA ou Metro as fitas que exibiria na sala modesta de Pilar, três vezes por semana: aos sábados, domingos e quartas-feiras. Neste último caso, tratava de reprisar o filme que rendera a melhor bilheteria semanal, todavia, com um daqueles seriados que levavam a criançada ao delírio.

Na escola, tentávamos adivinhar de que jeito o mocinho, a mocinha ou os amigos dos dois (a turma do bem) escapariam dos perigos a que foram expostos no episódio anterior. “Ficar em episódio”, aliás, foi por muito tempo expressão usual de conversas que mantivéssemos sobre qualquer situação pessoalmente arriscada. A resposta ainda não dada a pedidos de namoro, a nota da prova escolar prestes a sair, a bronca esperada do pai ou da mãe, tudo isso deixava o camarada em episódio.

Tarzan, Capitão Marvel, Nyoka e, até mesmo, a Guarda Costeira americana fizeram-me perder muitos sonos por culpa de Seu Zé Ribeiro que demorava uma semana entre uma exibição e outra.

Tive a oportunidade de entrevistá-lo para uma das páginas amarelas da Revista “A Carta”. Título da matéria, proposital, simbólico: “E o vento levou!”. Sua vida e sua morte, meses depois do falecimento da mulher, dona Beatriz, foram tratadas por mim em Editorial do “Jornal da Paraíba” que, aliás, quase sem conter as lágrimas, vi emoldurado na parede de sua casa por um dos seus filhos.

Ah, Seu Zé, quanta saudade. Do senhor e do tempo em que os perigos do mundo sucumbiam aos cuidados paternos e à bravura dos mocinhos da tela. “Cinema Engenho” traz-me de volta a imagem desse homem e de sua missão formidável: retirar da maleta os sopapos de Buck Jones, a beleza de Grace Kelly, os encantos de Brigitte Bardot com seu convite irresistível ao pecado, aquele, o cometido na privacidade do banheiro, com que enchíamos os ouvidos do Padre Gomes sem medo da surra em casa. Afinal, confissão é confissão.

Bananeiras vai reabrir o seu cinema. Estarei lá, na fila do gargarejo

A União trouxe ontem (19) matéria bacana de página inteira, assinada por Ítalo Arruda, sobre provável revitalização do Cine Teatro Excelsior, de Bananeiras. Tudo graças a um projeto dos Guardiões da Serra, grupo de escotismo local que concorre a financiamento do Fundo de Direitos Difusos do Ministério Público da Paraíba.

A excelente perspectiva recarregou-me esperanças e melhores expectativas de retornar em breve a Bananeiras só para assistir à sessão de reinauguração do Cine Excelsior. E vibrar com um novo diferencial do lugar da minha saudade: ser a primeira cidade paraibana a reinstalar o seu cinema de rua.

Mas tenho um pedido a fazer aos autores do projeto: botem aquela corneta difusora de volta no frontispício do prédio e toquem ‘Corintiano’ com o velho e bom Saraiva, o rei do sax soprano. Era a música que anunciava o começo do filme para todos aqueles que estivessem nas calçadas e bancos da Praça Epitácio Pessoa, bem na frente do ‘Cinema do Padre’.

A lembrança me leva ao final dos anos 60 do século passado, um tempo em que o Professor Vicente, meu pai, também músico, fornecia a trilha sonora de espera dentro e fora do cinema. Fornecia mediante troca de LPs de Saraiva e Bob Fleming (Moacir Silva), entre outros virtuoses do sopro, por ingressos para os filhos adolescentes – este que vos escreve e o mano Robson.

Não perdíamos uma fita, desde que permitida aos meninos de nossa idade. Mas, ainda que a censura não permitisse, não raro Rubinho de Vicente, como me chamavam, escalava o telhado de casas vizinhas ao cinema para ver alguns proibidões por uma das janelas abertas e quase coladas ao teto, bastante alto, da sala de exibição.

Pesando igual sibite, não quebrava uma telha sequer nem fazia zoada para chegar até aquelas brechas que tanto arejavam o ambiente como me deixavam ver ‘filmes 18 anos’, de projeção que certamente passava à revelia ou omissão conveniente do Padre José Diniz, o irascível e temido pároco de Nossa Senhora do Livramento, padroeira local e verdadeira dona do Excelsior.

Fissurado em cinema, o Mago de Vicente, alcunha alternativa com que também me identificavam, um dia fui vítima fácil de Ivan, filho de Zé do Padre, sacristão, projetista e bilheteiro do Cine Excelsior. Foi assim…

Esgotada a cota de ingressos a que meu pai tinha direito, estava na praça desolado por não ter como assistir a um Durango Kid prestes a sair de cartaz. Faltando pouco segundos para Saraiva tocar a última nota do ‘Corintiano’, Ivan me socorreu. Entregou-me ligeiro um pedaço de papel da mesma cor do ingresso. “Corre que já vai começar”, instigou-me. Não contei conversa…

Entreguei rápido o bilhete ao porteiro e mais ligeiro ainda fui procurar uma cadeira vaga na fila do gargarejo, onde mais gostava de assistir. Não deu quatro minutos, o segundo trailer estava perto de acabar quando acabaram com a minha graça.

Puxando-me pelo braço, o porteiro devolveu-me à calçada do cinema, onde me aguardava um comitê de vaia mobilizado pelo mesmo Ivan, o terrível. Chorando e morrendo de vergonha, só lembro ter apanhado uma pedra que arremessei com toda força possível na direção da cabeça do meu algoz.

Não acertei o alvo. O alvo me acertou. Derrubou-me com um murro, ganhei um olho inchado, levei uma pisa em casa e fiquei uma semana de castigo. E só voltei a assistir filme quando o Professor Vicente resolveu se descartar de mais um LP da sua coleção de saxofonistas e clarinetistas em mais uma troca por ingressos para o Cinema do Padre.

(Foto: Cine Teatro Excelsior em imagem cedida pelo jornalista e escritor Ramalho Leite, liderança e referência de Bananeiras)

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