CONVERSA COM O NETO, por Frutuoso Chaves

Imagem: blog.diasbike.com.br

Era vermelha e branca. Tinha dois espelhos retrovisores com boa visão de tudo aquilo que atrás estivesse. Tinha um farol para clarear a noite e o dínamo para fornecer a eletricidade capaz de acendê-lo. Trazia uma bomba para encher os pneus quando secassem e uma bolsa atada ao quadro, logo abaixo da sela, para guardar duas chaves de boca com as medidas de todas as porcas e parafusos. Isso e mais uma lixa, um pedaço de borracha e um tubinho de cola para remendar câmara de ar, quando necessário.

Assim que eu a vi, me apaixonei. Não era nova, zerada, saída da fábrica. Mas era bonita e conservada como se nova fosse. Os paralamas, branquinhos, continham duas listras da cor de morango maduro em cada lateral. Combinavam com a cor do quadro robusto, feito para aguentar o peso de duas pessoas adultas: o do piloto e do carona, ou o da carga que se pusesse no bagageiro no lugar de gente.

Ah, sim… O bagageiro tinha dois prendedores laterais na cor preta que seguravam as encomendas dentro de pacotes, ou de sacolas. Ambos ficavam deitados, escondidinhos, na parte de cima onde se podia sentar sem machucar o bumbum até o momento de serem levantados, um de cada lado, para segurar a carga com a força de duas molas bem fortes. O guidão, com punhos escuros de borracha, reluzia como uma joia feita de prata. Da mesma cor, e tão brilhante quanto, eram as maçanetas para os dois freios.
Os meninos do meu tempo que tiveram a sorte de possuir uma belezura daquela enrolavam uma flanelinha amarela atada ao guidão a fim de manter tudo brilhando. Qualquer sujeirinha logo desaparecia no esfregão da flanela.

Como eu gostava daquela sela. Quando nua, mostrava um couro duro suspenso em duas molas enroladinhas. Elas, as molas, serviam para você não sentir os buracos da rua nem os da estrada. Caíssem os pneus num deles, as molas balançavam e amorteciam o impacto. Vestida com um forro de espuma de capa clara, a sela se tornava ainda mais macia. Era como sentar numa nuvem.

A minha tinha o escudo do Fluminense, o time do meu coração. Mas poderia ter o do Flamengo, o time do teu pai, se flamenguista eu fosse. Era assim: cada um que escolhesse o clube preferido. Meu irmão, que antes de mim havia ganho uma bicicleta azulada, tinha sela de Vasco.

O mano morria de inveja de mim, mas não por causa do escudo. Ele invejava mesmo era meu conjunto de farol e dínamo. Por causa disso, meus passeios noturnos eram deliciosos.

O dínamo parecia uma garrafa pequena de metal com tampa feita para girar quando recostada ao pneu. Isso movimentava o gerador de eletricidade dentro da garrafinha que tinha fios até o farol dianteiro e a lanterninha de trás. Muitas vezes eu ouvi, orgulhoso, o espanto das pessoas mais velhas: “Parece uma motocicleta”.

Vou te contar uma história. Lá em casa ainda não havia tevê. A gente via filmes e futebol na casa de um colega de escola que morava numa fazenda distante da rua uns dois ou três quilômetros. Certa vez, saímos de lá por volta da meia noite. Imagina só o perigo. Mas era em Pilar, onde ninguém atacava ninguém e somente se tinha medo de alma penada. Sabe não, amiguinho? Fantasma, assombração.

A gente se via obrigado a retornar pelo muro do cemitério à falta de outro caminho. Minha bicicleta na frente clareando a estrada e a do meu irmão atrás, seguindo o rastro de luz.

Foi quando eu vi dois olhos de fogo em cima do muro branco. Freei com a rapidez de um raio e meu irmão quase passou por cima de mim. Pronto, escureceu tudo porque dínamo desse tipo só funciona em movimento.

Nós dois, ali, arrepiados dos pés à cabeça. Mas tínhamos que voltar para casa. Tanto quanto de fantasma a gente também sentia medo do cinto de seu Juca, teu bisavô. “Um, dois, três e já”, arrancamos com tudo. Eu na frente e meu irmão nos meus calos. Nunca corremos tanto. E nosso anjo da guarda nunca atendeu a tanto pedido contra quedas. Pensa na agonia que seria se estatelar no chão debaixo de dois olhos de fogo.

Entramos em casa com o coração aos pulos. Seu Juca nem precisou usar o cinto porque se compadeceu dos dois filhos amarelos, de olhos esbugalhados, tremendo feito vara verde. “O que foi?”, nosso pai perguntou. “Conta tu”, pedi ao mano. E ele: “Não. Conta tu mesmo”. Por fim, contamos. E Seu Juca: “Estão vendo? Isso foi castigo. Vão rezar e dormir”. Justamente, foi o que fizemos. Dormimos até as 10 horas, porque naquele dia não havia escola.

A lua assombra, mas o sol traz de volta a coragem, de modo que resolvemos investigar o mistério. Sabe o que vimos, dia claro? Uns seis bodes e cabras em cima de um montão de terra. Foi dali que um deles pulou para cima daquele muro. E foi dali que teve a luz do meu farol refletida nos dois olhos grandes. Farolzinho danado de bom. Além de tudo iluminar, também me ensinou que todos os bichos, à noite, possuem olhos de gato.

Se a gente não tivesse feito isso iria passar o resto da vida ciente de ter visto assombração. Não acho que exista, mas prefiro não arriscar. Nunca mais desejei passar tarde da noite em cemitério.

(A Miguelzinho, que começou a pedalar sem o apoio daquelas duas rodinhas extras. Afinal, bicicleta foi feita para ter apenas as duas grandes. Não é não?).

BONS BELARMINOS, por Babyne Gouvêa

Imagem meramente ilustrativa copiada de declamaria.wordpress.com

Eles eram irmãos, de baixa estatura, de cor morena e cabelos lisos. Ele tinha bigode espesso, bem preto. Ele se chamava Manuel Belarmino – apelidado de Seu Mané e ela, Socorro Belarmino, carinhosamente também chamada de Help.

Vieram do interior da Paraíba procurar trabalho. A seca provocou a migração para a capital. Aportaram à casa dos meus pais e de imediato se estabeleceu empatia de ambas as partes. Ela ajudou a minha mãe nos serviços da casa e ele foi executar o seu ofício no Esporte Clube Cabo Branco.

A disposição física dos irmãos era admirável. Músculos dos braços e pernas faziam inveja a qualquer fisiculturista. A musculatura foi resultante do esforço físico diário em busca de água – do campo, onde moravam, a uma cacimba nas proximidades da cidade de Belém do Brejo do Cruz. Caminhavam com latas d’água na cabeça.

Socorro não tinha registro de nascimento. Foi convencida por minha mãe a providenciar a carteira de identidade. Inicialmente, foi ao cartório e conseguiu diminuir quinze anos na idade real. De trinta e três foi registrada com dezoito anos. Não sabemos até hoje como ela conseguiu essa proeza.

Um dos meus irmãos tentou alfabetizá-la. As lições eram ministradas com a Cartilha do Povo. Aquela mesma do Vovô viu a Uva. Ele era enérgico e aplicava repreensões à aluna, na ânsia de vê-la lendo. Ela, temerosa, decorava a sequência das palavras na cartilha. No final das contas, foi possível deixá-la familiarizada com as letras.

Quem passava pela sede social do Esporte Clube Cabo Branco via Seu Mané movimentando uma vassoura ou uma enceradeira. Era incansável. Mesmo nas horas de descanso ele não conseguia parar de trabalhar. Os colegas interrogavam de onde vinha tanta disposição. Respondia sem tergiversar, com dúvidas se estava satisfazendo a curiosidade dos amigos: “Não abro mão de trocar uns arrochos com a minha esposa, diariamente, nos primeiros raios de sol”.

No seu dia de folga, Mané se dirigia à casa dos meus pais e pedia para fazer algum serviço. Importante era não ficar ocioso. Em uma das ocasiões minha mãe lhe orientou a retirar umas manchas na parede do terraço; e que usasse um produto chamado Vim, que se encontrava na cozinha. Quando terminou o serviço quis mostrar o resultado, como de praxe. Ele passou vinho localizado, casualmente, na copa. A parede, evidentemente, ficou cor de rosa. Recebeu elogios bem típicos da personalidade delicada da minha mãe.

Determinado dia, Seu Mané seguiu para a Feira da Bicicleta. Fez compras e apareceu ostentando um relógio no pulso esquerdo. Gostava quando a minha mãe conversava com ele. E vendo a novidade em seu braço se estabeleceu o diálogo:

— Muito bem, Seu Manuel, me mostre o relógio mais de perto; ué, só tem um ponteiro!

— É porque com dois ponteiros é mais caro, D. Cidinha.

A beleza dos dois irmãos estava na pureza revelada em suas ações. Foram criados em ambiente sem malícia, mesmo enfrentando as adversidades que lhes foram impostas. Belarmino significa, gramaticalmente, indivíduo tolo. Belarmino, sobrenome de Seu Manuel e Socorro, significa servir ao próximo sob o credo da honradez.

E O LADRÃO ERA BRANCO…

Igor Martins Pinheiro (foto). Branco, 22 anos, morador de Botafogo, bairro de rico da Zona Sul carioca. Segundo a Polícia do Rio, foi ele quem furtou a bicicleta de um jovem casal branco no Leblon, no último final de semana.

Em seu Registro de Vida Pregressa (RVP), Igor acumula 28 anotações criminais, metade das quais dedicada a roubo de bicicleta.

Pelo crime foi acusado no dia do furto o instrutor de surfe Tomás Oliveira, também de 22 anos. Negro. Seus acusadores: a professora de dança Mariana Ribeiro Spinelli e seu namorado, o designer Tomás Oliveira.

Em casos assim, a curiosidade compele-me a vasculhar as redes sociais dos envolvidos. Hoje (18), tentei localizar alguma exposição pública anterior de Igor Martins Pinheiro. Localizei um perfil no Instagram.

Fui surpreendido. Ou nem tanto. Primeiro, ao clicar na foto do Igor encontrado apareceu o aviso abaixo, com o recado de alguém que se diz irmão do suposto ladrão.

Não me surpreenderá se a defesa apresentar alegações de cleptomania ou coisa parecida. Menos surpreendente ainda se a Justiça aceitar.

Bem, prosseguindo na busca, a minha vista de perto – pouca e ruim – mandou clicar na foto do casal (reproduzida abaixo) que aparece no mesmo perfil que leva o nome de Igor Martins Pinheiro.

Quando ampliada a fotografia, na legenda, outra surpresa. Ou nenhuma. Vejam.


Encerrei a pesquisa perguntando-me: se procurar mais um pouco e descobrir em quem Igor votou para presidente, terei alguma surpresa?

ESCAPULIDAS, por Ana Lia Almeida

Sei que ninguém aguenta mais esse papo de quarentena e isolamento social. Mas a pandemia ainda não acabou, o que se há de fazer? Nós, os Isolados, continuamos bem guardados em casa.

Devo confessar, no entanto, que tenho lá minhas escapulidas. Peço que não se zangue, cara leitora, e que não me julgue, estimado leitor. Atire a primeira pedra aquele que, no meio de uma pandemia, nunca escapuliu.

Não falo do protesto ao qual eu tive de ir, nem das providências policiais e bancárias de quando a minha mãe foi roubada. É outro o departamento.

Vou logo confessar tudo de uma vez, do menos para o mais grave. Primeiro que durante a feira, às vezes, eu me aproveito e passeio no supermercado. Entre uma prateleira e outra, eu me distraio com itens coloridos, que eu nunca vou comprar, só pelo sabor de estar mais um pouco fora de casa. Segundo: dia desses, voltando da farmácia, eu acabei parando em um café. Ele surgiu na minha frente, luminoso, recém-inaugurado, perto da minha casa. Eu não pude resistir.

Terceiro, e o mais grave, pelo que desde logo peço a caridade de vosso perdão. Não é tanto pelas medidas sanitárias, que foram todas preservadas. O pecado residiu na luxúria. No desfrute de tanta felicidade numa só escapulida, enquanto meus companheiros isolados padeciam trancafiados em suas casas numa tarde tão bonita.

Eu ganhei as ruas de novo, em cima da minha bicicleta. A padroeira da cidade me saudou quando passei em frente à sua catedral. Confraternizei com os irmãos venezuelanos que celebravam um culto no Ponto dos Cem Réis. O vento acariciou meu rosto entre as árvores da Praça Rio Branco. Desci para a Lagoa, natalina, festejante.

Do alto do meu êxtase, pensava: eu amo a rua, a rua é a minha casa, um dia eu volto pra rua de vez. Um dia, próximo, mais perto do que longe. Um dia em que eu poderei abraçar as pessoas, apertar as mãos delas, beijar-lhes as bochechas. Será o dia mais feliz da minha vida.

Enquanto isso, continuarei em casa. Escapulindo, de vez em quando, que ninguém é de ferro.

JP tem ‘anjos’ que ensinam a pedalar

A dentista Atamar Araújo tem 57 anos. Aprendeu a pedalar na EBA e, hoje, é ‘bike anjo’ (Fotos: Wendell Santeiros)

Para quem acha que andar de bicicleta é coisa de outro mundo, domingo é dia de se apegar com um anjo, ou melhor, com um ‘bike anjo’. A partir das 8h30, vai ser realizada mais uma Escola Bike Anjo (EBA), no Ponto de Cem Réis, em João Pessoa. E nem dá pra inventar a desculpa de que não tem bicicleta, porque elas estarão lá.

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Ladrões e motoristas ameaçam ciclistas em João Pessoa

(Foto: Arquivo/TrânsitoWeb)

Não tem sido fácil a vida dos ciclistas em João Pessoa. Eles reclamam de insegurança por todo lado: seja pela violência, seja por desrespeito de motoristas de carro à distância mínima que deve ser mantida em relação à bicicleta nas ultrapassagens.

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