BEIJO MATREIRO, por Babyne Gouvêa

Imagem meramente ilustrativa

Acordou com uma vontade danada de beijar. Julita era assim, cheia de manias. E esses desejos surgiam após acordar pela manhã. Eram os sonhos, dizia ela.

Pensou, meio cabreira, se valeria à pena pedir o beijo àquele com quem sonhou. Tomou o café matinal maquinando o que deveria fazer para resgatar o melhor beijo que tinha recebido até então. O cara já estava casado, mas isso não vinha ao caso. Ele era chegado a um beijo qualquer que fosse a circunstância. Julita o conhecia de longas datas.

A compulsiva exigia higiene bucal do parceiro, corria léguas de distância de mau hálito. Sentia atração pelo cheiro de uma boca cheirosa. Para ela, fazia toda a diferença no beijo.

Optava por um sorriso completo. Segundo ela era um sorriso com os principais dentes intactos. Muita exigência para uma mulher considerada balzaquiana.

Deixaria claro que o beijo serviria para concretizar um sonho; não iria além disso. Os “sonhos”, alegava, eram obsessões compulsivas não tratadas. Mas seguia adiante como dona do seu nariz. Ninguém tinha nada a ver com a sua vida e suas manias.

Não conseguiu convencer o personagem do sonho, velho conhecedor de suas matreirices. Saiu, então, à procura de outro na sua seleta lista de candidatos.

Pedia a Deus para que os seus desejos não fossem frustrados. Julita era seletiva, sabia direcionar as suas impertinências. Por se sentir esperta achava fácil enganar os pretensos com um hálito artificial, manipulado na hora do beijo. Mas essa maquiagem burlava apenas os ingênuos.

Resolveu insistir naquela boca do sonho e foi à igreja apelar aos santos. Súplicas ao seu protetor surtiram efeito contrário às suas ambições, ao ouvir uma voz surpreendente: “Moça, cumpriu a penitência?”. Era o padre que atendia Julita no confessionário auricular, lembrando a higiene bucal.

JOÃO E CLARISSE, por Frutuoso Chaves

Imagem: cleofas.com.br

Eram sempre vistos juntos desde a oitava série quando passaram a sentar lado a lado no banco escolar. Antes disso, não. Afinal, em todos os cantos do mundo, menino e menina apenas se buscam quando começa ele a engrossar a voz e, ela, a afinar a cintura.

Não foi diferente com aqueles dois. Recém-ingressos na adolescência, decidiram que se completavam. Ele era bom em gramática e literatura, enquanto ela se dava de melhor modo com as ciências exatas. Aceitavam, apenas ocasionalmente, outras participações no estudo em conjunto liderado por um ou por outro, conforme cada inclinação.

Os pais logo se acostumaram a vê-los com frequência em cada sala e cada varanda. Quantas vezes, mesa posta, não aceitaram, prazerosamente, o convite feito por cada mãe? Neste quesito, surgiram, também, as preferências individuais, tal como em relação às matérias da escola. A sopa de casa, para aquela mocinha, não era tão boa quanto a da mãe dele. Por sua vez, ele preferia o frango ensopado servido na casa da amiga, aos sábados, invariavelmente.

Com o passar dos anos, sem que percebessem, formaram um par constante, também, na praça e nos bailes. A dança coladinha, de ritmo lento, romântico, já lhes parecia bem melhor do que a das músicas alegres, saltitantes, no grupo de amigos, todos soltos em seus requebros e passos.

Quando colados permitiam-se o contato físico que, por mútuo acanhamento, não buscavam em outros ambientes. No pequeno clube, com todas as licenças conferidas pela música e pelas circunstâncias, apertavam-se os corpos e experimentavam todas as sensações disso decorrentes. Eram, afinal, ali, mais um par na multidão em quem ninguém reparava.

Uma vez, quase tiveram um beijo de namorados. A milímetros do toque nos lábios as bocas desviaram-se. E ele sentiu que partira dela o desvio. Já em casa, na cama, agradeceu aos Céus por haver ignorado a rejeição da qual, é bom dizer, não estava assim tão certo. Teria ela reagido a alguma relutância sua? E relutou, sim, compreensivamente, pois a ninguém será fácil beijar com paixão uma amiga de vários anos.

Decidiu que, dia amanhecido, poria as cartas na mesa. Pessoalmente, não entendia a razão pela qual uma dupla que se amassava num salão de baile era incapaz de juras e beijos num pé de muro. Assim decidiu, mas não o fez. O tempo de amizade impedia tanto os beijos quanto a discussão do tema.

E a vida seguiu sem sobressaltos até o momento em que a notou mais fria e mais distante. Já se culpava pelo que tentara junto ao muro quando ouviu a história do desembarque de um sujeito bonito, atlético, na casa de uma amiga em comum.

“Clarisse, agora, deu para me procurar”, comentou a tal amiga, maldosamente, sem dúvida, porquanto atribuiu essa aproximação inesperada e súbita a Cláudio, um primo da Capital a quem pai e mãe hospedariam por duas semanas. Não passou recibo do baque. Caprichou no ar de descaso, mudou o rumo da conversa e logo se despediu da informante com as entranhas em brasa.

O visitante havia ali deixado em alvoroço todas as meninas descomprometidas e com idade para o namoro. Bom de conversa e de futebol, também se fez amigo da rapaziada costumeiramente avessa a invasões do território por machos do tipo alfa. Luiza, uma moreninha sapeca, sem proibições para o Coreto, ganhou o moço.

Transcorridos não mais do que três dias já as duas mães notavam o esgarçar daquela união de carne e unha. “Onde anda João Vitor?”, perguntou uma delas. E a outra: “Você brigou com Clarisse?”. Respostas evasivas, envergonhadas, em ambos os casos.

Cláudio se foi e deixou com Luiza o endereço, o telefone e a promessa do reencontro. As meninas todas sossegaram e a vida retomou o curso normal, tranquilo, pachorrento. A única novidade ficou por conta do desapego daqueles dois.

Uma noite, na praça, ele abandonou a roda de bate-papo ao perceber a aproximação da amiga. No baile seguinte, ela teve a companhia de Tonico. E não ficou sem troco: sozinha, dias depois, a caminho de casa, percebeu os amassos e beijos que em outra ele dava. O cretino, perversamente, havia escolhido para tamanho espetáculo aquele muro e a prima de Cláudio.

Os namoros sucessivos logo chegaram ao conhecimento dos pais com brigas nas duas casas. “Não criei filha para a libertinagem”, ela ouviu do seu. E não engoliu o choro, um pranto sem consolo, penoso, pesado.

A má fama, enquanto isso, afastava dele as meninas mais sérias e, de resto, o bom relacionamento familiar. “Quando você vai deixar de ser moleque e tomar jeito de homem?”, perguntou-lhe o juiz de direito de cujos cachos saiu, ao saber, também, da presença constante do filho nos bares. Cada repreensão doméstica era atribuída por um à existência do outro. E nunca mais se falaram.

Toda cidade, por menor que seja, dispõe de um bêbado com ares ou de filósofo, ou de poeta. O dali era dado ao deboche: “Quem disse que a paixão não liberta?”. Outras vezes, porém, compadecia-se daqueles dois e, nessas ocasiões, desafiava o resto do mundo: “Quem já não perdeu um amor por medo de perder uma grande amizade?”. Quanto a mim, prefiro calar. E vocês?