Marisa está com saudade de mim. Disse-me isso com todas as letras. Fosse eu comentar com meus insignificantes botões as mensagens insistentes que recebo duas vezes por semana, no mínimo, poderia ouvir deles algo indevido. “Quem diria, não é? Setentão e abalando corações” – coisa desse tipo.
E eis que, agora mesmo, me bate a dúvida: falo ou não falo? Minha indecisão decorre do temor de não ser levado a sério, de ser tomado por mentiroso. “Meu filho, nunca perca o senso do ridículo. Seja tudo menos pabuloso”, ouvi isso, certa vez, de Seu Juca, meu pai, no dia em que pegou o primogênito a contar vantagem numa pescaria de curimatãs. Se, em matéria de peixe, fui por ele severamente repreendido, imagine se o assunto for a perseguição da Marisa.
Explica-se, então, o medo da censura pelo qual sou tomado até os dias de hoje. O carão do velho no menino que um dia eu fui me marcou profundamente. Até por que foi muito bem merecido.
Desde então, não me envergonho ao confessar que nunca fui bom de pescaria. Contudo, não é menos verdade que já fui bafejado pela sorte grande. Quer ver? Deixemos, então, a área da pesca e vamos para a dos transportes. “É muita areia para o seu caminhãozinho”, os amigos assim me advertiam quando eu comecei a perseguir dona Miriam. Agora, adivinhem com quem estou casado há 45 anos e quem pariu meus três filhos.
Tanto quanto meu pai eu também, felizmente, costumava ouvir meu avô Frutuoso, de quem herdei o nome. “Quem não arrisca não petisca”, aconselhava ele a toda hora. Grato, meu velho.
Falo, ou não falo? Sei lá… Eu não quero ser comparado a Edinho, o filho do agente fiscal. Moço já feito, foi para o carnaval no Recife e voltou de olho roxo. Aos meninos da minha época ele contou sobre a briga em que se meteu com um grupo de turistas americanos durante o baile de salão, quando o sol já iluminava a Quarta-Feira de Cinzas. Bateu nuns três, mas no quarto se deu mal. Era Roy Rogers.
Tenho, porém, da minha parte, a consciência tranquila. As pabulagens que eu contava morreram, logo cedo, no tempo dos curimatãs. Então, vou falar, sim. Quem não quiser acreditar não acredite. O problema não é meu.
Luiza também anda a me ligar. Não chega a dizer que está com saudade, mas pede, quase todo santo dia, que eu repita as visitas que já lhe fiz. Tem mais: acabo de receber um telefonema da moça da Vila Romana. “Seu Frutuoso, não veio mais por aqui? Temos ofertas excelentes”.
Eu bem desconfiei quando, tempo atrás, adquiri com a Marisa uma batedeira de massa pesada, dessas que servem ao preparo de pizza e pão. Paguei à vista, porém, mesmo assim, me exigiram CPF, endereço e e-mail. Dê o tipo de informação e perca o sossego. Marisa e Luiza, para ficarmos nessas duas, põem um batalhão no seu encalço. Com Luiza eu não lembro de encontro nenhum. Desconfio de que alguém que eu há muito conheço de cama e mesa pegou meu cartão e correu para lá.
O fato, meu companheiro, é que nunca se deve subestimar as mulheres. De repente, elas podem ser cúmplices na realização de coisas impensáveis, desde que isso ou aquilo lhes seja de mútuo interesse. Chegam ao ponto de permitir mensagens quase diárias aos maridos. “Saudade de você, Frutuoso”, foram os termos exatos da Marisa. E haja a outra, a Luiza, a me cobrar visitas. Não tenho a menor dúvida: ambas assim o fazem com a daqui a atiçá-las.
Todavia, não deixo de admirar a posição a que chegou a dupla que tão insistentemente me aborda. A audácia, o senso empreendedor, o pulso firme na condução dos negócios há décadas fazem delas, em escala nacional, duas grandes expressões do mercado varejista.
Não posso dizer o mesmo de quem, para a satisfação do mais famoso serviço de televendas, solicitou, em agosto passado, via e-mail, que eu traçasse o perfil de Seu Juca, a fim de me orientar sobre a escolha do presente que ele gostaria de receber no Dia dos Pais que já então se aproximava.
Fosse tal solicitação feita de viva voz, eu pediria ao moço um tiquinho de paciência. Para os que, como eu, passaram dos 70, a consulta a cada pai poderá ser feita presencialmente. Basta esperar um pouco.
ASSEDIADO, por Frutuoso Chaves
A CASA DO MEU AVÔ, por Babyne Gouvêa
…“A casa de meu avô…
Nunca pensei que ela acabasse!
Tudo lá parecia impregnado de eternidade”…
(Manuel Bandeira)
Em ‘Evocação do Recife’, os versos do extraordinário poeta modernista pernambucano despertam-me lembranças do meu avô materno, Eugênio de Lucena Neiva, e do sítio onde morava, localizado em extensa área verde que nos anos 50 e 60 margeava a Epitácio Pessoa, principal avenida da capital paraibana.
A propriedade ocupava uma área que se estendia do local onde hoje funciona a Usina Cultural da Energisa até a clínica de radiologia Nova Diagnóstica, cujo terreno foi vendido por meu avô ao usineiro Renato Ribeiro Coutinho. Já a parte de trás do sítio pegava do muro do Asilo Santa Catarina ao prédio do antigo Ipep, aí incluído o Hospital Edson Ramalho.
A morada ampla e seus vários compartimentos acomodavam bem meu avô e três filhos solteiros, dos onze que teve com Maria Teresa (Nini), avó que não cheguei a conhecer. Guardo na memória os mínimos detalhes da casa grande e seu entorno, lugar de tantas alegrias da minha infância. Da entrada principal à despensa onde os mantimentos eram armazenados, tenho tudo bem gravado na minha saudade.
Na sala de estar, o piano onde minha mãe tocava divinamente ‘La cumparsita’ para o deleite de quem estivesse presente, atento e enlevado pelos acordes de Dona Cidinha. E a radiola Phillips, adornada por lindo móvel de madeira na saleta contígua, pronta para tocar os discos de vinil de maravilhosa coleção? No mesmo ambiente, um telefone preto com discagem em anel de metal reluzente, afixado na parede. O aparelho era seguramente um dos pioneiros da cidade.
Os demais cômodos – quartos, salas, corredores etc. – eram todos enormes na visão de uma criança como eu, que também se encantava com o cheiro bom que exalava de todo o interior da residência. E em meio a odores e proporções alentadas na minha percepção, uma imagem particularmente marcante: meu avô deitado na rede, em seu quarto, um cantinho só dele, onde gostava de receber os netos, sempre com palavras carinhosas.
Vô Eugênio tinha o hábito de escrever cartas para os parentes mais distantes, a exemplo do seu primo Epitácio Pessoa, presidente da República no quadriênio 1919-1922. Era algo que fazia no ‘gabinete de leitura’, vizinho ao quarto de dormir. Seu birô era uma escrivaninha de esteirinha bem antiga.
Circulando por outros espaços da casa, passando pelo imponente relógio de coluna com seu pêndulo anunciando as horas, chegávamos à cozinha que atraía a meninada interessada nos quitutes das nossas tias, sempre exibindo os seus dotes culinários em fogão à lenha, posteriormente trocado por um a gás.
Quando a criançada não invadia a cozinha nos intervalos das brincadeiras, corria para debaixo das árvores de onde apanhava ou derrubava frutas muito disputadas em animadas competições pra ver quem comia mais ou arroxeava mais a língua com tinta de oliveira.
Parava de brincar quando via meu avô alimentar suas aves ou, então, ao vê-lo entrar na mata do sítio para inspecionar seus domínios. Ficava preocupada em momentos assim e tranquila quando o via retornar de sorriso largo no rosto, principalmente no instante de reencontrar Cidinha, a filha predileta.
Chegava a tarde e a hora do cafezinho, sagrada. Pão francês quentinho com queijo, acompanhamento mantido pela tradição entre os descendentes de vovô Eugênio. Satisfeitos, enfim, sob as mangueiras nos maravilhávamos com o canto das cigarras anunciando procriação, sem percebermos o passar das horas.
Ao final do dia e da visita, a despedida abalava bem pouco a nossa alegria. Porque voltávamos para nossas casas na certeza de sermos recompensados em breve com o retorno à casa de vovô Eugênio.
MADRINHA QUERU, por Aderson Machado
Madrinha Queru – como a chamávamos carinhosamente – era a minha avó materna. Por sinal, foi a única avó que conheci e convivi com ela até meus doze anos. Quanto a meus avôs, não os conheci.