ESCAPAMOS, por Ana Lia Almeida

Tradição da virada do ano em Madri - badaladas

(Imagem: dicasbarcelona.com.br)

Finalmente escapamos do ano passado. Ele, estrada sinuosa de chão batido na descida de um precipício. Nós, treminhão cargueiro desses que se vê cheio de cana nos caminhos da Zona da Mata. Cai-não-cai,  atravessamos os buracos dos dias, morremos de medo nas curvas do tempo e enfim sobrevivemos ladeira abaixo nesses doze meses sombrios.

Uma breve retrospectiva começaria, como todo ano, no Carnaval, com a vaga notícia de um problema longínquo talvez se aproximando de nós. A Páscoa já nos alcançaria de portas fechadas, trancados em casa. Milhares de mães e filhos faltando no Dia das Mães. São João sem fogueira, sem gente dançando quadrilha, sem sanfona, sem forró.

Chegada a primavera, resolvemos todos sair junto com o sol em busca das flores e o tempo fechou novamente. Humanidade remota, aglomerada em torno da indiferença pela tragédia em curso. Perdas e mais perdas. Assim passamos pelo Natal e chegamos ao Ano-novo, ansiosos pelo fim desse caminho sinuoso que foi 2020.

O ano acabou, é verdade, e aos poucos se aproxima o ponto de onde, vacinados, cada um retomará o seu destino.  Mas ainda falta um bocadinho de chão para terminar a estrada da pandemia. Exaustos, parece que estamos como quem vem chegando de viagem e vai logo tirando o cinto de segurança antes mesmo de entrar na rua de casa. Atenção! Curvas ainda perigosas. 

CANCELAMENTO DO ANO-NOVO, por Ana Lia Almeida

Mídia de cabeçalho

(Imagem: Twitter/Bruno Acioli)

Querem cancelar o Ano-Novo, e agora? Como é que vamos sair de 2020 sem o momento exato da meia-noite anunciado pelos fogos diante da multidão? Meu medo é que assim, sem testemunhas, o Ano-Velho queira achar que não passou, venha dizer que foi só uma meia-noitezinha qualquer, dessas de quinta para sexta, a gente foi que perdeu o sono, normal, emendando um dia noutro.

Puro negacionismo, querendo driblar a passagem dos calendários. Não, isso não pode acontecer. Precisava mais do que nunca pular aquelas sete ondas, sabe, cada onda um desejo, cada desejo um protesto contra o ano que passou. O primeiro pulo, claro, para a vacina: eu lá em 2021, num posto de saúde, oferecida, dois braços e um bumbum à primeira seringa que passar na minha frente.

Pular, depois disso, para os muitos abraços e beijos nas pessoas amigas, nas conhecidas e nas desconhecidas também. Pulando para o meio da rua de volta. Pulinho na feira de Mandacaru com direito a comer tapioca sem máscara na barraca de D. Adriana. Pulão para os dias inteiros na praia, guarda-sol novo, isopor cheio de cerveja gelada, um livro e um frescobol. Um pulo para voltar a ver nascer a dúvida dos meus alunos na contração de suas testas, e perguntar, bem ao vivo, você aí, o que foi que não entendeu?

Por último, o maior salto de todos para a onda mais brincante, cheia de de espumas cintilantes dançando ciranda na beira da praia: hei de pular o Carnaval, mesmo fora de época, mesmo só paro ano; hei de me aglomerar de novo naquele imprensado, sem chances para qualquer distanciamentozinho, empurrando a pandemia ladeira baixo! “Ó o Pesado”, o coronavirus passando para nunca mais.

Não vai dar certo cancelar o Reveillón. E se ficarmos presos nessa tragédia para sempre, trancafiados na frente do computador? A virada vai ter que acontecer. Tracemos um plano: um balde cheio d’água com um pouco de sal grosso. Uma playlist com o som de fogos de artifício. Roupa branca, sidra Cereser. Na hora da virada, tocar os fogos em volume máximo, ir despejando nossos pés na água salgada do balde e pular até completar as sete vezes. Não esquecer dos desejos correspondentes. Estourar a sidra. Relaxar um pouco e aguardar o novo ano amanhecer.

Reparemos bem como o sol nasce todos os dias, mesmo nos mais duros tempos. Qualquer manhãzinha dessas ele nascerá de novo e as coisas estarão melhores. Que assim seja. Assim será.