AS MÃOS DA MINHA MÃE, por Babyne Gouvêa

Sonhei com elas. Impossível esquecê-las, mas como descrevê-las?

Desde pequenina eu sentia a suavidade das mãos da minha mãe Cidinha (foto), como era carinhosamente chamada. Percebia a delicadeza delas em tudo que tocava. Eram mãos aveludadas, que conseguiam tornar bonito o feio, tornar agradável o incômodo. Verdadeiras mãos de fada. Esses dotes contribuíram para as lembranças se sedimentarem em mim.

Penso como suas mãos me serviram com maestria através dos anos. Dos acalantos aos ensinamentos educativos e triviais, responsáveis pela formação da minha personalidade.

Lembro bem de suas belas mãos me alimentando. E no segmento cozinha era insuperável, servindo de parâmetro para os amantes da arte culinária. Manipulava os pratos com muito amor, e o resultado era a satisfação estampada no semblante de quem saboreava as suas iguarias.

Inesquecível a imagem de suas mãos mexendo com uma colher de pau o grande caldeirão de canjica ou de doce de banana, que distribuía entre os familiares e vizinhos. E com a mesma destreza procedia com outros preparos gastronômicos.

Eram inúmeros os seus dons culinários. As receitas se transformavam em guloseimas irresistíveis, recheadas de afeto – o ingrediente principal. O ritual diário não a desmotivava e o seu entusiasmo atraía os comensais.

Bordar e costurar eram outras atividades desenvolvidas com primor. Ao bordar uma colcha florida, tinha o esmero de adotar pontos diferentes em cada flor do seu desenho. O perfeccionismo lhe perseguia.

As suas mãos continuavam hábeis na música, ao dominar a técnica do piano. Executava as notas musicais nas teclas do grave ao agudo e vice-versa, com competência e graciosidade. Os ouvintes se encantavam com os majestosos movimentos.

Era exímia motorista. Guiava o seu automóvel com uma aptidão admirável. Coordenação motora, reflexo, posicionamento correto das mãos ao volante eram reconhecidos por todos que a viam dirigindo.

Num quadro de enfermidade ela me aplicava injeção de um jeito indolor, num toque de mágica. Conseguia essa proeza. A doçura do seu gesto agia como um analgésico. Ao aferir a minha temperatura colocava a palma da mão nos locais indicados, funcionando como um auxiliar antitérmico.

Conciliava uma discussão entre os filhos com a delicadeza das palavras empregadas. Chamava-os para uma conversa e usava as mãos entre as laterais do rosto das crianças, afagando-o. Era uma forma carinhosa de abrandar os ânimos infantis.

Anatomicamente, as mãos da minha mãe eram perfeitas. Empregava nelas a fineza que a natureza lhe deu. Gastas pelo constante uso, mas eficientes em todos os serviços que delas precisavam.

No dia em que ela se encantou, as suas mãos descansavam imaculadamente. Refletiam a maneira pura como conduziu a sua vida. Demonstravam serenidade, prontas para serem eternizadas.

Anos se passaram. E certa vez em minha vida, atravessando uma adversidade, senti as suas mãos acariciando a minha face. Deixei fluir aquele momento. Afinal, eram das mãos de minha mãe que eu precisava.

A CASA DAS CINCO MULHERES, por Babyne Gouvêa

Imagem meramente ilustrativa (Foto: Renovação Carismática)

– A nossa querida chegou!

Era assim a recepção a minha mãe ao chegar à casa de suas cunhadas, as minhas tias Gouvêa. Cinco mulheres maravilhosas, solteiras, cada qual com as suas peculiaridades. Mas todas de forte personalidade. 

Tinham algo em comum: a mania por limpeza. Um tanto misofóbicas. Alguém longe do seu convívio estranhava esse hábito. Fazia um grande favor quem as cumprimentava sem estender a mão. Dois beijinhos laterais nem pensar.

Respeitávamos os costumes mantidos por todas elas. Como do atavismo ninguém escapa muitos da família herdaram uma certa misofobia. Fico imaginando as minhas tias queridas convivendo com a atual pandemia. Já haviam sobrevivido à gripe espanhola; não, não desejaria essa terrível condição de vida para pessoas tão bondosas!

As nossas visitas à sua casa se davam com uma ida inicial ao lavatório. Pronto, com as mãos lavadas podíamos começar a conversar com boas risadas e um cafezinho em bule de ágata no final da tarde. Costumavam cear nesse horário, já que dormiam cedo. Em suas camas rezavam o terço diariamente fazendo as suas preces pelos parentes, e abaixo delas em cima do taco guardavam o seu dinheiro – era o lugar ideal para algo tão sujo.

Os assuntos conversados diziam respeito aos familiares; adoravam receber notícias levadas por nós – fazíamos o elo delas com o mundo. Não saíam de casa, apenas uma delas visitava a irmã casada. Embora vivessem confinadas sob o mesmo teto, tinham uma concepção bela e leve da vida.

Uma delas gostava de ler Dante Alighieri, poeta italiano da literatura medieval. Com boa dicção e eloquência ela descrevia o poema épico “A Divina Comédia” desse autor. Ficava imaginando uma viagem ao inferno, purgatório e paraíso com discussões detalhadas sobre a temática do livro. Também lia Luís de Camões, poeta português, e se encantava ao falar sobre a epopeia “Os Lusíadas” versando sobre a viagem de Vasco da Gama às Índias. Além de ler, gostava também de escrever poesias. Ao declamá-las, levava os sobrinhos ao delírio enfatizando cada estrofe dos seus poemas.

Eram mulheres puras e crédulas, vulneráveis a pessoas aproveitadoras de sua ingenuidade. Havia quem narrasse uma situação fictícia para atrair comiseração, elas acreditavam e se tornavam vítimas certas. Eram extorquidas e não se davam conta, ficavam felizes em praticar uma boa ação; católicas fervorosas tinham uma vivência sem mentiras – essa palavra não existia no seu vocabulário.

Elas não se adequariam aos dias atuais, certamente. A limpeza delas não residia apenas no físico, mas sobretudo no caráter. Os exemplos de retidão deixados por elas são seguidos pelos familiares.

Como exalavam beleza e suavidade as minhas tias! Afáveis e corretas, eis os adjetivos que melhor qualificam as Gouvêa. E lembrando delas me transporto emotivamente para a Casa das Cinco Mulheres.

SUBLIME MORADA, por Babyne Gouvêa

Um tempo de “casas simples, com cadeiras na calçada” de uma gente humilde (Foto: Armazém do Texto)

A rua era sossegada e bem posicionada com relação a diversos bairros da cidade. Próxima a três grandes escolas, facilitava o acesso dos estudantes que nela habitavam. A maioria dos seus moradores se deslocava de um determinado lugar a outro, geralmente, sem utilizar veículos.

As casas em estilo próprio dos anos 40/50 – quando a estética rebuscada e ornamentada do século anterior foi deixada para trás – tinham as suas estruturas voltadas à funcionalidade e praticidade. 

Durante o dia, as donas de casa administravam a cozinha, a limpeza em geral, incluindo as roupas, além de assegurar largo sorriso aos maridos quando retornavam dos seus trabalhos desenvolvidos fora de casa. As crianças logo cedo se dirigiam às escolas e à tarde faziam as suas tarefas escolares, muitas vezes sob a supervisão da mãe.

Diariamente, circulavam na rua e imediações fornecedores de verduras, frutas, mel de engenho e muitos outros produtos. Os vendedores de vassouras e os compradores de vasilhames de garrafa costumavam agitar os moradores com os seus anúncios tonitruantes. Com os sustos provocados nos clientes eram rebatidos com advertências desaforadas, muitas vezes hilárias.

O amolador de tesouras e o responsável em consertar as panelas de cozinha noticiavam a sua presença com sons bem particulares, emitidos de forma suave para não incomodar os residentes. Mas logo cedo o jornaleiro se manifestava divulgando as manchetes em tons altos e apelativos, conclamando os madrugadores. A estridência na voz ganhava um tom alarmante quando noticiavam nomes de alguma autoridade política, em evidência à época.

Ainda pela manhã e em dias alternados, um enfermeiro circulava em sua bicicleta oferecendo serviços de aplicar injeção, aferição de temperatura e pressão arterial. Com o seu impecável terno azul celeste, com rosa vermelha na lapela e um elegante chapéu de feltro cinza, era dono de uma simpatia ímpar, não se intimidando em exibir um sorriso sem dentes.

A tarde chegava e, após uma rápida sesta, os homens retornavam ao trabalho, as crianças estudavam e brincavam e as donas de casa passavam roupa ouvindo alguma novela de rádio. À tardinha, o padeiro chegava oferecendo os seus deliciosos pães, enquanto o sorveteiro fazia a alegria da criançada. Esses dois profissionais eram pontuais e rotineiros.

Chegando a noite, as mocinhas se embelezavam para aguardar os namorados, cada qual seguindo os dias agendados, de acordo com a permissão dos pais.

As domésticas se encontravam com os seus amores nas esquinas. Eles chegavam acionando as campainhas de suas bicicletas com sela almofadada contornada de franjas, estampando emblemas de times de futebol. As colônias de banho ou perfumes que os casais usavam aromatizavam praticamente toda a rua.

E eis que chegava o momento das espreitadas de uma vizinha. Às escondidas, achando que não seria percebida, espiava os casais por uma janela indiscreta. Ficava naquela posição por muito tempo, mas aparentemente era ignorada pelos observados, pois a observadora era senhora de certa idade.

Alguns atreviam-se em demonstrações amorosas mais ousadas e sorriam discretamente, talvez imaginando a reação da olheira. No dia seguinte, numa audácia investigativa, a senhora vigilante apreciava conversar com amigas próximas procurando conhecer a origem dos rapazes, para saber se eram de sobrenome ‘bem conceituado’.

Nesse hábito de mexericar não havia maledicência, não resultando em consequências danosas para alguém. Era uma prática de entretenimento numa época de costumes típicos de uma cidade pequena. O mais importante é que a generosidade era marca do convívio de praticamente todos os moradores da pacata e inesquecível rua.