CIRCO, SANTOS E FEIJÃO NO COCO, por Frutuoso Chaves

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Foi pequena a temporada do Circo Estrella del Mar, na cidadezinha. Não passou de uma semana, enquanto os outros, antes e depois dele, demoravam-se, ali, 15 ou mais dias, até a mudança para a praça seguinte.

A confusão em que seus artistas se meteram foi apenas uma das razões para a curta permanência. A outra foi a Semana Santa, tempo da reclusão de corpos e espíritos, dias de meditação e luto.

Também, de tudo com leite de coco: o peixe, o bredo verdinho e até o feijão nosso de cada dia. Das coisas assim temperadas por ordem expressa da minha mãe nem o dono da casa escapava. Mesmo ele que pretendia mandar em tudo com pulso de ferro.

Como eu detestava feijão no coco. E acredito, piamente, que assim estava em numerosa companhia. Não conheci menino da minha idade que disso gostasse. A não ser os bem pobrezinhos, aqueles que pediam um jejum para as mães jejuarem. Não estariam a pedir o contrário: um desjejum para a mãe, ou quem quer que mais fosse?

Pedido de perdão tem prazo validade? Espero que não tenha, pois, sinceramente, eu também não gostava da Semana Santa. Daqueles dias intermináveis de reflexão e reza, dos santos todos cobertos e da alimentação frugal, sem carnes, até o momento do exagero de peixes, favas e feijões, tudo com o bendito coco.

De circo, naqueles meus 14 anos, eu gostava. O Estrella del Mar – assim mesmo, metido a besta, espanholado – chegou sem aviso. A indicação do terreno deu trabalho à Prefeitura. O padre não queria aquilo perto da Via Sacra. O ponto então escolhido foi o Compra-Fiado, topônimo inspirado na penúria dos moradores. O lugar abrigou, direitinho, o tablado, a arena, o pano de roda, as tendas e tralhas da trupe.

Fugi duas vezes para ver o espetáculo e, já na primeira, caí de quatro pela contorcionista, um elástico em pessoa. Que vergonha quando o número terminou e aquela pequena deusa subiu ao poleiro (os degraus que nos estádios de futebol abrigam os geraldinos, a turma sem grana) e pôs uma fita perfumada no meu ombro, providência destinada a arrecadar um dinheirinho além da quantia mixuruca rateada pela bilheteria. Até Paulo Barbosa, duas fileiras abaixo, costumeiramente mais liso do que eu, contribuiu, fita no ombro, com a bolsa da menina. E eu, ali, sem um níquel.

O desejo da reparação foi o que me fez voltar ao circo onde tudo se repetia: o palhaço com as mesmas piadas, os acrobatas com as mesmas piruetas e a pirralha com aquela fita cheirosa. A diferença, acho eu, foi a cédula a ela entregue, desta vez, com o valor e o tamanho do meu encantamento. Demorasse mais por ali o Estrella del Mar, a padaria do meu pai teria falido mais cedo.

Minto. Havia outra coisa também diferente naquela noite: a segunda parte do espetáculo reservada ao teatro, se é que as falas recitadas e a má postura dos atores mereciam o termo. O tema escolhido, em homenagem à ocasião, era A Paixão de Cristo.

Mesmo inocente acerca de muitas coisas da vida, em razão da pouca idade, comecei a desconfiar do empurrão forte de um soldado romano num dos apóstolos. Não era em Cristo que ele deveria bater? A barba espessa na cara de surpresa do homem assim agredido não me era de todo estranha. Eu a conhecia da cena anterior quando na cara de Judas e, antes disso, na do mestre de cerimônia.

Não demorou muito para o distinto público, ao cabo do terceiro intervalo, se horrorizar com a perseguição ao barbudo por alguém de túnica levantada e faca na mão. O perseguido fugiu pelo picadeiro, a rota mais curta.

Escapou do inimigo, mas não do delegado Fonseca que deu ordem de prisão à trupe inteira. Eu soube, depois, que a bebida corria solta nos bastidores reavivando a inimizade entre aqueles dois. A encrenca tinha começado em Itabaiana, a praça anterior, por causa do desrespeito ao décimo mandamento.

Definitivamente, os homens não aprendem. É lição que advém dos tempos bíblicos, mas nunca aprendida. Os machos, em todas as eras, não atinam para o fato de que não se deve juntar mulher e cachaça, se um estiver de olho apenas na bebida e, o outro, também, no tira-gosto.

De todo modo, acho que os dois inimigos se reconciliaram depois de uma noite na cadeia, porquanto partiram juntos e em paz, três dias depois do acontecimento.

Quanto a mim, observo que certas coisas deixam marcas permanentes. Ponham-me, ainda hoje, frente a apresentações da tevê com essas divindades olímpicas que pairam no ar e assombram o mundo com seus rodopios e logo me vem à mente a garota do Circo Estrella del Mar. Mesmo que eu nunca mais tenha sabido dela.

MEDITAR É PRECISO, por Babyne Gouvêa

Imagem: rudecruz.com

Nesta Sexta-feira da Paixão, como boa católica, contemplo as imagens de Jesus Cristo sendo sacrificado por nós, pecadores…”Ele foi ferido por causa de nossa rebeldia e esmagado por causa de nossos pecados. Sofreu o castigo para que fôssemos restaurados e recebeu açoites para que fôssemos curados.”(Isaías 53:4-5)

Penso também no ladrão Barrabás, posto em cruz junto a Cristo. Não sei qual o fruto do roubo cometido pelo gatuno crucificado. Seja lá o que tenha sido deve estar pensando no mal que deixou para a humanidade e, especificamente, para o brasileiro. Segundo os registros, Barrabás se redimiu, e essa ação deveria servir de exemplo para as gerações que lhe sucederam.

Digamos que ele tenha surrupiado joias. Naquela época não existia joalheiros refinados, como os de hoje, mas existiam as Salomés que ostentavam riquezas em suas cabeças, troncos e membros. Essa tradição fincou raízes durante séculos e, historicamente, mais forte em países ricos. Não me oponho a esse costume, desde que o bem precioso seja adquirido com recursos próprios e não alheios.

O nosso país, com uma população majoritariamente pobre, mas com lideranças gananciosas, torna-se sempre palco de notícias que envergonham a sua gente. No poder, os seguidores de Barrabás, ,de forma inescrupulosa, tomam para si pedras preciosas a princípio pertencentes ao Estado.

A Sexta-feira Santa é um oportuno período para reflexão. Pensar no motivo pelo qual Deus transferiu os nossos pecados e nossas culpas para o seu filho Jesus, que sangrou até a morte sob o peso dos nossos pecados.

Esse sacrifício não pode ter sido em vão, notadamente para aqueles que enaltecem Deus, e se dizem fiel a Ele, como alguns governantes da nossa nação. Até Dimas fitou o Cristo pendurado na cruz e perguntou por que motivo fora o Cristo condenado.

A pergunta feita pelo larápio arrependido, como narra a história, deveria servir de lição para as mentes dissimuladas e enganadoras de um povo ingênuo.

Com esperança no Judiciário da nossa pátria, desejo uma Semana Santa de meditação aos brasileiros que, como bons cristãos, saberão seguir os ensinamentos de Jesus Cristo.

O SENHOR MORTO, por Frutuoso Chaves

Imagem do Senhor Morto no Santuário Nossa Senhora do Rosário de Pompeia (Foto: Tripadvisor)

Ninguém, por qualquer meio, seria capaz de me fazer ficar sozinho na Igreja comandada, naqueles dias, pelo Padre Gomes. Culpa de Batista, o amigo mais velho de quem todos os meninos admiravam a coragem. Ainda frangote, com os primeiros pelos na cara, o moço atravessava as noites, do sábado para o domingo, em busca de um bom forró, nos sítios e grotões. Na verdade, de qualquer forró, dos ruins, também. Não se dava, nesse campo, a luxo algum.

De volta, o Sol ainda escondido, passava no beco do Cemitério e, encontrasse o portão aberto, deitava-se numa lápide, fazia da camisa travesseiro e dormia o sono dos justos. Pois bem, a tal ponto destemido, esse camarada fugia da Igreja, quando vazia, como o diabo da cruz. “No Cemitério, ainda durmo. Na Igreja, não há quem me faça”. Quantas vezes não o ouvimos dizer isso.

Pronto. Nada me aguçava tanto e tão bem o medo daquele ambiente sagrado quanto esse depoimento do meu velho amigo. Haveria, porventura, alguém tão abalizado nesses assuntos quanto um sujeito capaz de se deitar com os mortos? Se ele afrouxava perto do púlpito de onde Padre Gomes passava suas descomposturas aos pobres pecadores, imagine eu.

Mesmo em dias claros, com movimentação no local, eu evitava certas áreas da Igreja consagrada à Nossa Senhora Del Pilar, assim mesmo, espanholada, da forma como fora até ali conduzida pelo jesuíta Frei Francisco de Modena, nos primórdios do vilarejo.

Não gostava, particularmente, do altar sob cuja mesa alguém dispôs, numa caixa envidraçada, um Senhor Morto com a expressão mais angustiada e sofrida que já vi em toda minha vida. Não sei se definitivamente morto, posto que tinha os olhos abertos. A boca, também. Sangue brotava de muitas feridas e, não menos, da testa perfurada por espinhos. Todavia, longe dali, eu readquiria, além da coragem, um sentimento individual de revolta que não supunha capaz de caber em coração ainda tão pequeno.

Uns frouxos aqueles discípulos. E Pedro, hein? Negar três vezes aquela amizade, mesmo depois de afirmar que assim não o faria? Acontecesse comigo, eu cobriria tudo o quanto fosse soldado romano no bodoque.

Posso ser sincero? Não gostava, mesmo, da Semana Santa, assim tida e havida. Aqueles santos cobertos, os lamentos de cada Estação ao longo da Via Sacra. Dias inteiros sem bola e com jejum até não mais poder. Quando posta a comida à mesa, era um sem-fim de pratos à base de coco, tempero do qual sequer o feijão nosso de cada dia escapava.

E os pedintes à porta? “Um jejum para minha mãe jejuar”, suplicavam. Não estariam a pedir o contrário? Um desjejum para a mãe, ou quem quer que fosse?

Eu sonhava, então, com o Sábado de Aleluia, ocasião para todos os desagravos e para um novo encontro com Judas. O da minha cidade vinha com chapéu, paletó, camisa, gravata e sapatos, coisas, certamente, sobradas de algum defunto ou, quem sabe, de alguém que se fez mais próspero e gordo a ponto de não mais caber nas velhas vestimentas.

Não tinha quem ganhasse do moleque Escurinho na escalada ao pau de sebo para a derrubada do boneco feito no tamanho de gente de verdade. Era o bicho bater no chão e começava o rasga-rasga. Enfim, havia chegado para Judas o merecido castigo e, para os meninos que então éramos, a volta do riso e da alegria.

Mas, para um grupinho de presepeiros na mira da polícia, aquela festa, em particular, perdera a graça. Iriam todos em cana se fizessem a Leitura do Testamento, o momento apoteótico. O juiz cuidava, assim, de evitar brigas ocorridas em passadas malhações, quando os linguarudos destinaram, a título de consolo, gravata, sapato, camisa, paletó e chapéu do Judas a pais de meninas desmioladas e, ao que também diziam, maridos traídos. Se tiros houvesse, que fossem apenas os das bombas nas tripas de pano daquele boneco.