A BOLHA, por José Mário Espínola

O Triunfo da Morte, quadro de Pieter Brugel (Reprodução)

Após ler o meu artigo sobre a atual conjuntura política pela qual o Brasil está passando, Querido Amigo me disse: “Zé, você escreve para a sua bolha, que deve ficar muito satisfeita por ler o que gosta”.

Bolha? Minha bolha? Fiquei me indagando sobre a que mesmo ele se referia. Imediatamente veio-me à mente uma coleção purulenta em alguma parte do meu corpo. Lembrei-me das aulas de Dermatologia, proferidas pela professora Rosele, nos ensinando o diagnóstico diferencial entre furúnculo e antraz.

Vieram também à lembrança as aulas de Patologia do professor Arnaldo Tavares, que desenhava no quadro negro toda a sequência do processo inflamatório, culminando com a coleção classificada como dermatite purulenta.

Examinei-me num espelho e não encontrei bolha nenhuma, nem mesmo uma pelotinha que pudesse ser classificada como bolha.

Lembrei-me de um amigo que frequentava o gamão do Clube Cabo Branco, carinhosamente apelidado de Bolha, talvez pelo seu índice de massa corpórea (IMC), bastante avantajado.

Lembrei-me ainda do clássico da ficção científica A Bolha Assassina, de 1958, dirigido por Irwin Yeaworth Jr, que tornou mundialmente conhecido o brilhante astro americano Steve McQueen, um dos melhores atores que o mundo já viu.

A Bolha Assassina foi o meu debut nos filmes de ficção científica, gosto que cultivo até hoje. Pois bem, não consegui associar o filme àquilo que disse Querido Amigo.

Comecei, então, a pensar sobre o conteúdo dos meus artigos e sobre o perfil das pessoas de quem eu tenha conhecimento que perdem o seu tempo lendo o que escrevo. As conclusões me fizeram dar resposta a Querido Amigo.

Primeiro, esclareci que geralmente escrevo movido pela emoção. Que consegui preservar o senso crítico e a capacidade de me indignar. E a autocrítica também.

Disse-lhe ainda que muitas vezes escrevo indignado com a atitude de líderes irresponsáveis que vêm a público espalhar o ódio, a discórdia, recorrendo à mentira tão escancarada que só pode ser acreditada por aqueles que perderam o senso crítico, não têm opinião própria e acreditam languidamente em tudo o que lhes dizem. Esses, sim, os crédulos, alienados, vivem numa bolha, uma bolha cheia de pus.

Fiz ver a Querido Amigo que não consigo deixar de me sensibilizar profundamente com o quadro de miséria que está assolando as nossas ruas, a nossa vida, homens e mulheres famélicos pedindo ajuda para comer.

Falei pra ele que não consigo ficar indiferente ao ver crianças esquálidas e maltrapilhas pedindo para lavar o pára-brisa do carro em troca de alguns tostões que lhe ajudem a mitigar a fome.

E o que dizer das carroças guiadas por homens encaveirados, puxadas por burros esqueléticos, carregando restos de lixo, além de cães e gatos igualmente esqueléticos lutando por lixeiras, que terminam sendo conquistadas por pessoas?

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Percorrendo nossas ruas e prestando atenção ao que nos rodeia, é inevitável evocar a pintura ‘O Triunfo da Morte’, tela de autoria do pintor flamengo Pieter Brugel.

Também conhecido como O Velho, Brugel viveu na antiga região de Flandres, hoje território dos Países Baixos. Tinha estilo parecido com Hyeronimus Bosch.

Eles registraram flagrantes da vida medieval da Holanda. Tinham um traço fino, desenhos claros, nítidos, de belo colorido, mostrando o cotidiano daquele povo.

O incrível quadro de Brugel retrata Flandres assolada pela peste bubônica. A Morte, representada por um verdadeiro exército de esqueletos, é vista por todos os lados da tela, individualmente ou em grupos, atacando vivos e levando mortos em carroças, caixões com rodinhas e  carroças puxadas por cavalos só pele e osso.

Em primeiro plano, a Morte é vista matando adultos, crianças e animais. Atacando pessoas que estavam jogando cartas e gamão. Atacando casais namorando. Penetrando em banquete para o qual não foi convidada, onde são servidas caveiras em bandejas. Cavalgando o esqueleto de um cavalo, brandindo uma foice. Empurrando a multidão para dentro de uma imensa caixa. Tocando entusiasmadamente um tambor ao alto.

Em segundo plano, é possível ver esqueletos espalhando a morte pela região de Flandres assolada também pela seca, com árvores ressecadas ardendo em chamas, a natureza destruída pelo fogo. Ao fundo, na baía, navios incendiados.

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Quando prestamos a atenção para o momento político que o Brasil atravessa, com uma atmosfera mais tóxica do que a da Los Angeles do filme Blade Runner… Com as instituições democráticas ameaçadas pelo golpe escancaradamente preparado… A nação dividida pelo ódio disseminado, a pregação da morte e da destruição da natureza, em palavras e ações…

Enfim, quando assistimos a tudo isso, fica nítida a associação com o quadro de Pieter Brugel. Então, perguntamos: a Morte vai mesmo triunfar?

Portanto, Querido Amigo, eu escrevo para mim mesmo, como se estivesse preenchendo as páginas de um Querido Diário público, mesmo que ninguém venha a ler.

Escrevo para dizer a mim mesmo que eu tenho a certeza de que a Morte não triunfará.

É BOM ESCLARECER
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