Obra na barreira não tem licença ambiental, denuncia grupo Amigos do Cabo Branco

“É preciso fazer algo”, apelaram nesta terça-feira (27) cidadãos residentes em João Pessoa que se organizaram em defesa da preservação natural da falésia e de todo o ecossistema do Cabo Branco. Denominado Amigos do Cabo Branco, o grupo denunciou que a obra da Prefeitura da Capital na barreira não tem licenciamento ambiental completo nem Estudo de Impacto Ambiental (EIA). 

“A capital paraibana, onde se localiza o Ponto Mais Oriental das Américas, assiste estarrecida a destruição da enseada do Cabo Branco, início e fim desse referencial geográfico de importância mundial”, declara o grupo em mensagem ao blog, atribuindo tal destruição a “uma malfadada intervenção realizada pela Prefeitura Municipal, sob o pífio argumento de estar realizando obras costeiras”.

O grupo alerta ainda que os danos ambientais causados pelas pedras que invadem a areia da praia do Cabo Branco “podem ser não apenas irreversíveis, como também atingir praias mais ao norte”, reforçando o argumento e as preocupações do engenheiro Francisco Jácome Sarmento, Professor Doutor de Engenharia Civil da UFPB e um dos maiores especialistas em recursos hídricos do país.

Além de advertir e pedir em vão providências à Prefeitura ao constatar as pedras invadindo a areia do Cabo Branco, onde mora há mais de 25 anos, Sarmento escreveu artigo – publicado nessa segunda-feira (27) neste blog – com explicações e detalhes técnicos sobre o problema que pode destruir a praia. O texto do professor vai reproduzido a seguir, com suas ilustrações fotográficas originais. 

Cartão postal da capital paraibana, a praia do Cabo Branco, que dá nome ao bairro tido como o de maior índice de qualidade de vida da cidade de João Pessoa, está sendo destruída e a destruição ocorre sob o abrigo cínico do poder público municipal, que finge não saber que está dando causa aos progressivos danos ambientais verificados a olhos leigos naquela enseada icônica, principiada no ponto mais oriental das Américas, nossa grande referência de geografia e de cidadania.

Na condição de residente no bairro, há mais de 25 anos tenho testemunhado a dinâmica da linha de costa da enseada do Cabo Branco, em especial o trecho que se estende da falésia até os 500 metros finais da Avenida Cabo Branco. Não sou especialista em Engenharia Costeira, mas cursei disciplinas nessa área quando da realização do meu doutorado em Engenharia Civil pela Universidade de Hannover, na Alemanha, onde atua renomado grupo de engenheiros responsáveis pelos projetos das grandes obras marítimas do Mar do Norte bem como pela construção de muitos dos portos existentes no Oriente Médio.

Em 1994, em um dos meus encontros com um dos professores dessa equipe – Prof. Dr.-Ing. Claus Zimmermann – mostrei-lhe um simples cartão postal com uma vista aérea de João Pessoa, onde aparecia em destaque o Hotel Tambaú e, secundariamente, a ponta do Cabo Branco. Expliquei-lhe a preocupação que a cidade tinha com o processo erosivo que ameaçava a falésia. Perguntou-me então de que direção principal advinham os ventos, para com isso entender como as ondas atingiam a enseada. Indiquei no postal a direção sudeste, mas, para minha surpresa, o experiente projetista de obras costeiras fixou-se na geometria circular do Hotel Tambaú.

Entre comentários sobre a beleza do litoral ali retratado, disse-me que era muito difícil opinar sobre o processo erosivo predominante na falésia do Cabo Branco com base no que era visível no cartão postal, mas que, de duas coisas ele tinha certeza. A primeira, disse-me, que a existência do Hotel Tambaú tinha influência no processo erosivo da barreira, pois, sendo uma construção de concreto armado, fixara a linha de costa, causando reflexão das ondas que o atingem, emitindo essa energia na forma de ondas refletidas na direção da falésia, podendo assim contribuir com o aumento da amplitude das ondas que naturalmente agridem geografias como aquela.

A segunda conclusão, baseada naquela precária fotografia postal, foi a de que, além da reflexão de ondas, o hotel se constituía em uma barreira que, ao fixar a linha de costa naquela ponta entre Tambaú e Manaíra, interromperia o transporte de sedimentos advindo do sul (basicamente areia de praia), de forma parcial ou total. A cessação dessa dinâmica de transporte de areia de sul para norte, ou seja, da enseada de Cabo Branco para a enseada de Manaíra, faria depositar o material arenoso na adjacência sul do hotel (praia de Tambaú). A largura da faixa de areia tornar-se-ia mais delgada na direção sul, atingindo sua menor dimensão próximo ao início da falésia do Cabo Branco.


Mesmo sem o cartão postal apresentar qualquer possibilidade de visualização desses depósitos de sedimentos previstos pelo meu professor à época, os meios tecnológicos de hoje permitem, mesmo para um leigo, enxergar que ele estava correto, inclusive quando previu a necessidade óbvia de se proteger a porção de praia imediatamente após o Hotel Tambaú (direção de Manaíra), uma vez que, mais do que esperado seria a deposição da areia na enseada do Cabo Branco, conforme mencionado e, por continuidade da corrente de deriva, o carreamento da areia de Manaíra para as praias mais ao norte (direção do Bessa/Cabedelo). As obras de contenção que evitam esse processo erosivo no Hotel Tambaú são visíveis para quem transita na praia pela areia. Sem elas, a corrente de deriva “descalçaria” aquela construção, causando seu desmoronamento.

De fato, a interrupção dessa corrente de sedimentos causou danos em toda a extensão da praia de Manaíra. Os moradores mais antigos hão de se lembrar dos espigões rochosos que precisaram ser construídos perpendicularmente àquela enseada para se evitar o pior: ruína total da praia, do calçadão e, possivelmente, dos valorizados imóveis ali existentes.

O que hoje ocorre em Cabo Branco é muito semelhante ao que descrevi até aqui. As obras em execução pela Prefeitura Municipal de João Pessoa, supostamente destinadas à proteção da falésia contra as agressões marítimas, estão destruindo a enseada do Cabo Branco.

Isso porque inverteram a ordem de execução das obras, executando algo que sequer se sabe se consta em projeto, antes de implantarem os oito quebra mares previstos para dissipar a energia marítima. Diz-se que por falta de orçamento e necessidade de “mostrar serviço” em um ano eleitoral.

Já temos hoje mais de um quilômetro de praia com gradação de impacto ambiental que vai da total destruição, nos trechos em que a praia, há cerca de três meses, era uma praia arenosa, agora convertida em uma praia pedregosa, numa verdadeira superfície lunar. Em sua versão mais moderada, porém progressiva, o impacto causado pelas obras de prefeitura já exibe, na direção de Tambaú, algumas pedras, antes cobertas por espessa camada de areia carreada e reposta pela dinâmica natural estabelecida, agora rompida pelas maléficas intervenções do poder público.

Em 21 de junho do corrente ano, quando tive a certeza de que o processo de interrupção da reposição da areia da enseada do Cabo Branco havia se estabelecido e vinha progredindo a cada dia, enviei fotos e uma explicação a um secretário de grande relevância da Prefeitura de João Pessoa, na esperança de que tomasse providências. Nada foi feito e a obra, mais célere ainda se tornou durante o período da pandemia, celeridade essa talvez inspirada no conselho do Ministro do Meio Ambiente de aproveitar a tragédia para “passar a boiada”.

Não há que ser especialista em Engenharia Costeira, muito menos ser um “Herr Professor Doktor” alemão especializado nessa área, ainda menos aquele que me lecionou a disciplina de “Binnenverkehrswasserbau und kusten Ingenieurwesen” (sim, acreditem, há uma cadeira com esse nome por lá) para entender o processo que, a cada dia, destrói uma extensão cada vez maior da praia do Cabo Branco, prolongando-se perigosamente na direção de Tambaú.

Para entender, basta ter olhos e bom senso, pois é simples demais: a Prefeitura de João Pessoa construiu uma barreira de pedras imensas (pesam individualmente cerca de 1,5 a 2,0 toneladas) próximo ao sopé da falésia. Essa barreira impede que a areia, antes levada pela dinâmica natural do transporte de sedimentos da costa para a enseada do Cabo Branco, mantenha o equilíbrio que torna toda a enseada arenosa. Agora, sem a reposição da areia, o que havia desse material recobrindo as rochas da praia do Cabo Branco está sendo levado, deixando para trás uma praia sem “carne” (sem areia), com seu esqueleto exposto, ossos graníticos e outros avermelhados, todos agressivos como um campo minado e protegido por farpas, herança dos gabiões que, há bem pouco tempo, apoiados na areia antes existente, protegiam ciclovia e calçadinha de onde locais e turistas costumavam apreciar um cartão postal ainda mais belo do que aquele que mostrei ao professor alemão naquele hoje distante 1994.

Nesse dilema contemporâneo pessoense, tendo a pandemia como pano de fundo, o que mais me chocou, confesso, foi constatar a atitude dos representantes da Prefeitura Municipal de João Pessoa, empreendedora do feito, durante reunião in loco provocada pelo valoroso Ministério Público da Paraíba, ocorrida em 21 de junho, quando os participantes percorreram a pé os cerca de 600 metros desde o ponto de encontro até o local das intervenções, observando-se no trajeto toda uma paisagem destroçada, impossível de ser acolhida pelo promotor responsável e pelo engenheiro ambiental que o acompanhava como um processo natural que nada tinha a ver com a obra da Prefeitura. Não me admira que o MPPB tenha confirmado em seu sítio na internet, logo após a visita, a ocorrência de “prejuízos paisagísticos e urbanísticos” naquele trecho da enseada do Cabo Branco.

Visita capitaneada pelo MP-PB, ocorrida em 21/07/2020. À direita, camada de pedras de grande porte que interrompem o fluxo de sedimentos para a enseada do Cabo Branco

Tampouco duvido de que não seja generalizável entre os moradores presentes naquela reunião praiana a percepção do burlesco, do patético mesmo da cena em que uma numerosa brigada de representantes do poder público municipal se entreolhava, sem encontrarem respostas consistentes para as mais comezinhas indagações da promotoria sobre o mais trivial em empreendimentos com esse potencial de impacto: as licenças ambientais.

Na ocasião, foi-nos informado de que o licenciamento ambiental da obra fora “fatiado” de acordo com as fases de execução do empreendimento. Tal proceder certamente entrará para os anais do Direito Ambiental, na seção de curiosidades, pois equivale à situação análoga de se construir uma estrada entre duas cidades e licenciar a obra até a metade do percurso, deixando a segunda metade para quando houver disponibilidade de recursos financeiros para concluir a execução, sem interessar se há ou não viabilidade ambiental para essa segunda metade. O problema aí é que, assim como a proteção da falésia do Cabo Branco, trata-se de um só empreendimento. Licenciamento “fatiado” é uma trágica e, talvez, fatal curiosidade jurídica para a praia do Cabo Branco.

Concluo ressaltando que, apesar de todas as evidências, acessíveis à interpretação de qualquer leigo observador, os representantes da Prefeitura, talvez por apego ao cargo e ao que disso auferem, ativeram-se à tresloucada tese de que não havia relação de causa e efeito entre as obras realizadas e a destruição progressiva da praia, como se todo o processo de conversão de uma bela orla arenosa em uma baia rochosa e inóspita ao desfrute recreativo e paisagístico tivesse surgido do nada. É apostar em demasia na obtusidade dos cidadãos e cidadãs bem como dos que integram os demais órgãos de fiscalização.

Com a palavra o MPPB, o MPF, a Sudema, o Ibama, o TCE e o TCU, já que o que está sendo executado foi ambientalmente autorizado por um licenciamento ambiental “caseiro”, “fatiado”, feito pela própria Secretaria de Meio Ambiente da Prefeitura de João Pessoa, para o qual a tropa de choque oficial não soube informar se sequer havia EIA/RIMA, uma vez que, os que lá se encontravam – afirmaram – tinham “apenas” a incumbência de executar a obra (Secretaria de Infraestrutura) e disseram não conhecer o processo de licenciamento, como se a lei eximisse de responsabilidades por danos ambientais gestores públicos que executam empreendimentos bovinos, sequiosos por cruzarem a porteira da ilegalidade, enquanto os holofotes estão voltados para um vírus contra o qual, certamente, encontraremos a vacina. Já contra atitudes como essas, da parte de quem deveria cuidar da res publica

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