A MEIA, por José Mário Espínola

Logo nos primeiros anos do curso médico, Dr. Roberto tomou a sua decisão e comunicou à família: iria se tornar cardiologista. Passou a frequentar a cadeira de Cardiologia, interessou-se por eletrocardiograma, tendo sido o melhor aluno do Dr. Vanildo Brito, em sua turma. E olha que este era um professor muito exigente.

Ainda acadêmico, Roberto aprendeu a identificar qualquer arritmia. Mais tarde, passou a acompanhar o Dr. Luis Gonzaga de Miranda Freire, que era muito amigo da família.

Concluída a graduação, seguiu para São Paulo, cumprindo residência no Instituto do Coração Dr. Euríclides de Jesus Zerbini, onde foi aluno de luminares como o Prof. Radi Macruz, o excêntrico e genial Prof. Luis Venere Decourt e a paraibana Dra. Valéria Bezerra de Carvalho, brilhante cardiologista lá radicada.

Voltando para João Pessoa, por intermédio do Dr. Miranda Freire conseguiu um plantão no Prontocor, para o domingo à noite.

Em sua estréia vestindo branco impecável, lá estava o Dr. Roberto no sofá do repouso do plantonista, fazendo duas coisas que adorava: assistir ao ‘Fantástico’ e coçar a frieira que tinha entre o dedão e o indicador do pé direito.

Estava quase cochilando, quando foi despertado pela sirene da ambulância e o grito da enfermeira: “Dr. Roberto! Dr. Roberto! Chegou um homem em parada cardíaca!”.

Ágil em seus vinte e nove anos, rapidamente o Dr. Roberto enfiou os pés nos sapatos e chegou correndo à sala da urgência, onde estava, ainda na maca, um paciente de meia-idade, em quadro de parada cardiorrespiratória.

Homem hábil e prático, logo tomou a iniciativa e passou a dar as ordens, como ele sempre gostou de dar:

Ambú!

– Laringoscópio!

– Este foco tá uma bosta! Está sem pilhas! A lâmpada está queimada!

– Troca a lâmina, rápido!

– Adrenalina!

– Bicarbonato!

E por aí foi. Massageou, ambuzou, massageou de novo, fez mais adrenalina, fez atropina, deu choque com o desfibrilador… E nada!

Mais de quarenta minutos de massagem, voltou a examinar o paciente: sem respiração, o monitor em assistolia, a linha totalmente reta; midríase paralítica bilateral. Morto!

Consternado, exausto, Dr. Roberto constatou o óbito. Puxa vida, logo no primeiro plantão…

Passou, então, a preencher a folha de evolução clínica e a relação de medicamentos na folha de prescrição. Preencheu o Atestado de Óbito e voltou ao repouso, para assistir ao resto do Fantástico e coçar a frieira.

Foi quando notou que só um pé estava com meia. Procurou a outra pelo chão do quarto, debaixo do sofá, no banheiro, e nada. Dirigiu-se até a sala de urgência e perguntou à enfermeira:

– Vocês encontraram uma meia branca aqui pelo chão?

A enfermeira ficou pálida. Respondeu nervosa:

– Ai, Dr. Roberto… É do senhor? Pensei que fosse DELE! Eu tiro agora mesmo!

E logo foi tirando a meia do pé do cadáver e entregando ao Dr. Roberto, que ficou também pálido e ainda mais nervoso. Foi rejeitando a meia que lhe estava sendo entregue e gritando ríspido:

– Agora num quero mais, não! Tome a outra! Calce nele!

E deu a que lhe restava para a enfermeira completar o par do falecido.

José Mário Espínola
Ex-Urgentista

É BOM ESCLARECER
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Uma resposta para A MEIA, por José Mário Espínola

  1. Guilherme Sarinho escreveu:

    Excelente como sempre essa crônica do colega Zélia Mário Espínola.