Memórias de um tradutor de telegrama

Peço licença e até desculpas aos eventuais leitores. O texto adiante tem a pretensão de ser o primeiro de uma série – quem sabe um livro – sobre os 45 anos de jornalismo deste que vos escreve. Assunto de interesse um tanto restrito, pode ter alguma serventia aos meus iguais no ofício e afins. O que justificaria meu apelo à indulgência de todas e todos, jornalistas ou não, que deitarem olhos neste escrito.

Como pretensão e água benta não fazem mal a ninguém, penso que devo tal registro não apenas a minha história de vida. Talvez deva também à instituição Imprensa Paraibana, na qual atuei por quatro decênios e meio e à qual ofereço testemunho de quem tem o que contar, além de ter exercido praticamente todas as funções em uma redação de jornal, de revisor a editor.
Contar, por exemplo, que foi um tempo marcado por conflitos internos na categoria, no campo sindical ou associativo, e contra o patronato. No correr da luta, como diz o poeta, não faltaram também gravíssimos embates entre empresários do ramo e poderosos da hora. E pelo menos um desses enfrentamentos chegou ao paroxismo da violência, com o extermínio de uma vida humana.
Tudo isso permeado e entremeado por avanços profissionais de carona na crescente qualificação de novos profissionais nos cursos de jornalismo ministrados em universidades paraibanas, aliada a uma modernização industrial, instrumental e tecnológica, infelizmente pouco ou quase nunca acompanhada por algum progresso significativo das relações de trabalho dentro dos grupos empresariais da comunicação.
Vamos lá, então…
Minha estreia formal no batente jornalístico aconteceu no 1º de julho de 1974, data em que minha carteira de trabalho foi assinada pelo saudoso Aloísio Moura, à época diretor-superintendente do jornal O Norte, de João Pessoa.
Desde fevereiro de 1973, contudo, aos 15 anos comecei a trabalhar como revisor na Iterplan, gráfica e editora que o jornalista Jório Machado mantinha no bairro de Tambiá, também na capital paraibana.
Jório, também já falecido, editava e imprimia o seu combativo semanário O Momento na Iterplan, que também publicava livros didáticos, científicos e de literatura em geral.
Um quê de nepotismo

Entrei nessa vida de jornalista por nepotismo, digamos assim. Em fevereiro de 1973, Otávio Barbosa, irmão mais novo de Dona Aparecida, minha mãe, botou-me na ‘perdição’.

Gerente da Iterplan, Tio Otávio apresentou-me ao mundo do trabalho. Fiquei por lá um ano e pouco. Dos companheiros de trabalho, entre outros, lembro bem de Milton Nóbrega, nosso querido Mituca, capista genial, e do consagrado jornalista Paulo Santos, então exímio montador de páginas e fotolitos que seguiam para impressão.

Um ano e dois meses depois, ou seja, em abril de 1974, Marcone Góes, manda-chuva dos Diários Associados na Paraíba, soube de um rapaz que escrevia “direitinho” e era filho de um colega seu do curso de Direito da velha Universidade Autônoma de guerra (atual Unipê).

– Manda teu menino lá n’O Norte falar com Teó, Vicentão – disse Marcone a Vicente Nóbrega, meu pai.

Primeira função

Deveria me apresentar e me apresentei a Teócrito Leal, editor do jornal que era o carro-chefe dos Associados no Estado e veículo de maior força de opinião na Paraíba.

A estreia na Redação de O Norte deu-se na função de ‘tradutor de telegrama’, ou seja, datilógrafo do material que o jornal recebia das agências de notícias nacionais e internacionais.

Lembro bem que o noticiário do principal diário pessoense sobre fatos que rolavam no Brasil e no resto do mundo era abastecido pela UPI (United Press International) e AJB (Agência Jornal do Brasil).

As matérias chegavam por máquinas (teletipos) que funcionavam feito terminal ‘burro’ do fornecedor. O jornal limitava-se a receber, separar o joio do trigo e publicar o joio, como ensinava Millôr Fernandes.

Primeira mancada

O teletipo passava 24 horas por dia vomitando textos gravados e grafados inteirinhos com letras maiúsculas, sem acentos. Verdadeiros telegramas, portanto. Alguém teria que ‘traduzir’, ou seja, datilografar tudo aquilo botando acentuação correta e Caixa Alta e caixa baixa onde preciso fosse.

Foi o que Pedro Moreira ordenou-me fazer de pronto, assim que cheguei. Sem orientação alguma do meu ‘preceptor’, botei a perder tudo o que ele me deu para traduzir no meu primeiro dia de redação. Datilografei todo o material em Caixa Alta, colocando apenas os acentos.

Pedrão quase infartava quando lhe entreguei, com sorriso idiota, mas triunfante, aquele monte de matérias quase idênticas ao copião arrancado do teletipo. Sequer adequei os advérbios aos respectivos tempos verbais para dar sentido às notícias que chegariam aos leitores no dia seguinte.

Só pra saber 

Além das maiúsculas, minúsculas, acentos etc., o tradutor de telegrama deveria também trocar o ‘hoje’ do teletipo pelo ‘ontem’ e o ‘amanhã’ por ‘hoje’ no texto que sairia no jornal feito em um dia para o outro. Troca acompanhada, por óbvio, pela conjugação verbal correta, compatível com o momento de leitura.

  • EXEMPLO
  • • (como o texto do teletipo chegava à redação)
  • LOS ANGELES [UPI] – O EX-GOVERNADOR DA CALIFORNIA RONALD REAGAN DISSE HOJE (27) QUE EH FATO CONSUMADO SUA DERROTA NAS PRIMARIAS PARA ESCOLHA DO CANDIDATO REPUBLICANO A PRESIDENCIA DOS ESTADOS UNIDOS.
  • (como deveria ser o texto para a edição do jornal)
  • Los Angeles (UPI) – O ex-governador Ronald Reagan, da Califórnia, disse ontem que é fato consumado sua derrota nas primárias para escolha do candidato republicado à presidência dos Estados Unidos.

Cabra bom da peste

A bem da verdade, e para além da minha burrice, faltou-me instrução mínima de Pedro Moreira para dar conta do recado a contento. Talvez porque ele – assim me pareceu – ficou visivelmente aborrecido tão logo me entregaram aos seus cuidados.

Compreensível. Não era fácil acumular todo aquele trabalho de edição (exigia redigir, titular e diagramar) com o encargo de ensinar qualquer coisa a um foca sem noção alguma das tarefas a cumprir.

Nossa relação progrediu rapidamente para amizade, contudo. Pedro era um cearense da melhor qualidade que lamentavelmente viria a falecer, ainda muito jovem (37 anos, suponho), em desastre de carro na estrada para Recife.

E ainda bem que o meu desastre inaugural não foi suficiente para dispensa imediata. Tanto que à segunda fornada de telegramas “dei o meu melhor” e produzi o bastante para o meu editor ‘descer’ às oficinas duas páginas bem cacheadas de notícias nacionais e internacionais.

Pedrão ficou feliz. Afinal, terminar mais cedo significava, quase sempre, chegar mais cedo ao Cassino da Lagoa ou La Veritá, no Centro da cidade, ou ao Luzeirinho, na principal avenida (Vasco da Gama) do bairro de Jaguaribe. Era o bar predileto do meu chefe imediato.

Ligeiro ‘glossário’

  • Batente – é como o jornalista chama a sua lida diária, associando a palavra também ao seu ambiente de trabalho.
  • Fotolito – filme do tamanho da folha de jornal e, por extensão, a máquina que fotografa as páginas montadas do jornal.
  • Descer página – enviar para a oficina (setor gráfico) a folha onde são diagramadas notícias, artigos, fotos etc.
  • Diagramar – distribuir as matérias produzidas pela reportagem e redação em diagrama do tamanho da folha do jornal.
  • Foca – iniciante no jornalismo.
É BOM ESCLARECER
O Blog do Rubão publica anúncios Google, mas não controla esses anúncios nem esses anúncios controlam o Blog do Rubão.

4 Respostas para Memórias de um tradutor de telegrama

  1. Socorro Andrade escreveu:

    Lendo esse texto que me foi enviado por amigos e familiares, fiz uma viagem de volta no tempo e me vi de novo na redação de O Norte cercada de tantos amigos queridos. A saudade foi grande é inevitável. Como você, comecei em O Norte como revisora, já era estudande de jornalismo. Pouco tempo depois fui pra redação fiquei em O Norte por 13 anos, fui repórter e cheguei a chefia de reportagem. Parabéns Rubens, seu livro será muito aguardado. Belíssimo texto sobre a memória da nossa imprensa e das nossa vidas nas redações e nessa paixão que é o jornalismo.
    Grande abraço,
    Socorro Andrade

  2. Pedro Patrício escreveu:

    Caro, Rubens.
    Não sou da área jornalística. Mas, posso lhe dizer que esse seu “ensaio literário ” estava fazendo falta para aqueles que viveram uma epoca de ideologia e romantismo.
    Trabalhar em uma redação de jornal era um desafio de levar a um publico avido as notícias do mundo.
    Os meios eram rudimentares em relação aos de hoje, porém eficazes pela competência daqueles abnegados trabalhavam para a notícia.
    Lembrar de: Otacílio Quiroz, Virginio da Gama e Melo, Natanael Alves, Jorio Machado, Bio Ramos, Anco Macio, Francisco Pereira da Nobrega, Luiz Algusto Crispin.Esses que já não estão aqui.
    Mas, aqueles que ainda resistem do logotipo ao off sete e internet: Gonzaga Rodrigues, Martinho Moreira Franco, Walter Santos, Gilvan de Brito.
    Perdão, caro jornalista/ escritor estou apenas querendo exercitar o meu propósito de não ser omisso, pois sei que com certeza você lembrará desses e de muitos que na cadeia produtiva da notícia variou as madrugadas para levar a informação ao público.
    A boemia talvez fosse a compressão de um trabalho árduo.
    Minhas homenagens aos editores, redatores, revisores , fotografos e os profissionais gráficos, os últimos a saírem das edições.
    Vá em frente, Rubens. O seu livro será sucesso.