CORAÇÃO DE ESTUDANTE, por Rubens Nóbrega

Congresso da UNE em 1979 na UFBA, em Salvador (Foto: Milton Guran)

Muita gente não vai acreditar, mas já participei do movimento estudantil e dei alguma contribuição para reconstruir a União Nacional dos Estudantes (UNE), há 40 anos ou quase.

Quem me iniciou na militância foi o Negão Jotacê, companheirão do Curso de Direito e de Libelu que em 79 já acumulava quilometragem universitária suficiente para concluir duas ou três graduações, uma após a outra.

Mas ele não era do tipo que entrava na Universidade para servir à causa e por lá fica muito mais tempo que o necessário para vencer todas as disciplinas, pegar o canudo e cair no mundo.

Dono de prodigiosa inteligência, Negão não precisou estudar muito para fazer primário, ginásio e secundário com ótimo desempenho, ajudado pelo ensino de qualidade que a escola pública oferecia naquele tempo.

Assim, no primeiro vestibular que fez, entrou de primeira. Universitário, rapidinho percebeu ter encontrado a vida que pedira a Deus: casa e comida de graça, além de muita diversão, um pouco de arte e algum engenho.

Sabido e esperto além da conta, Negão tinha um atributo adicional e decisivo para se dar bem nos estudos e, se quisesse, em muitas profissões. O cara escrevia – e ainda escreve – muito bem. Com facilidade, criatividade e extremada agilidade.

A agilidade remetia à velocidade com que batia nas pretinhas. Significa que o Negão era e é excelente digitador, talento que desenvolveu com esmero desde quando fez o curso de datilografia na Escola de Padre Hildo, na Igreja Santa Júlia do bairro da Torre, em João Pessoa.

Com tantos predicados, logo passou a ser disputado por colegas de Letras e alunos de outros cursos da área de Humanas. Todo mundo queria fazer trabalho e monografia com o Negão. Terminou por fazer disso um meio de vida.

Tanto datilografava como fazia o trabalho no lugar do freguês. Sem pai rico pra sustentar, Negão tinha mais é que se virar. Até por que o dinheirinho que vez por outra recebia de casa mal dava para uma rodada no Bar da Tapa.

No mais, Negão não se apertava. Tinha a Casa Universitária das Trincheiras para morar, o RU pra comer e fornecer o tira-gosto do final de semana, pois era de lá que ele e os demais residentes recebiam o charque, o feijão, a farinha e as verduras pro arrumadinho.

Livros? Sem problemas. Tomava emprestado de outros estudantes e da biblioteca da Universidade. Máquina e lugar para fazer os trabalhos que lhe rendiam o ‘salário’? Nenhuma dificuldade. O DCE era o seu escritório.

Sim, porque assim que chegou à Universidade, Negão logo se enturmou com os Valter, o Preto e o Branco, e começou a bater ponto no Diretório. Virou secretário da entidade, tanto no sentido político como no burocrático. Aí, tomou gosto de vez.

Não era pra menos. O movimento lhe proporcionava momentos fantásticos na juventude. Como se não bastasse, Negão fazia muito sucesso também entre as companheiras. Diziam que ele tinha um talento enorme para conquistar o mulherio.

Com todo esse cartaz, não era difícil pro Negão ser escolhido nas assembleias discentes para compor delegações ou representar o DCE em congressos e reuniões nacionais do movimento estudantil.

Em abril de 79, por exemplo, lá se foi pra Brasília. Fui junto, no lugar de Vatico, que adoecera na véspera de viajar. Eu era suplente no grupo que representaria a estudantada da Paraíba no encontro preparatório do 31º Congresso da UNE, que se realizaria em Salvador (BA) no final de maio daquele ano.

Mas a gente só foi graças à habilidade do Negão para pedir e conseguir as coisas.

Ele descolou ajuda em dinheiro da própria Universidade e as passagens a gente foi buscar na Assembleia Legislativa e na Câmara dos Vereadores da Capital.

Da mesma forma, a gente só voltou à Paraíba por obra e graça do Negão e de sua incrível cara-de-pau, secundada por aquele papo de derrubar avião que levou na conversa alguns dos nossos mais experientes parlamentares na Câmara Federal de então.

Basta dizer que conseguimos quatro passagens de ônibus Brasília-João Pessoa nos gabinetes de Antônio Mariz e Marcondes Gadelha e duas aéreas na 1ª Secretaria da Câmara, onde mandava Wilson Braga.

Os três foram escolhidos a dedo. Mariz e Marcondes, porque tinham simpatia declarada pelo movimento estudantil. Braga, porque fazia praça do seu tempo de Casa do Estudante e de ter viajado para Moscou como liderança secundarista.

Fomos em quatro aos gabinetes. Negão, eu e mais dois companheiros – um de Sergipe, outro do Ceará. Mas, para todos os efeitos, e para efeito de apresentação aos deputados, todos eram estudantes paraibanos precisando de ajuda para voltar à terrinha.

O plano quase melava no primeiro gabinete em que entramos. Mariz inventou de perguntar pela família e a cidade de origem de cada um, mas o Negão atalhou e cortou a curiosidade do deputado.

“Deputado, esse tipo de informação é complicado. O senhor há de compreender que a gente ainda está na clandestinidade (referia-se à UNE). Os companheiros aqui já foram presos, apanharam, são perseguidos… O deputado deve saber como é”.

Mariz compreendeu perfeitamente e liberou as passagens. A seguir, Marcondes e Braga. Sendo que Braga se empolgou tanto com a visita que nos deu um bom trocado para o lanche e vouchers para dois dias de refeições no restaurante da Câmara.

Depois, fomos aos gabinetes dos deputados de Sergipe e do Ceará, onde invertemos os papéis. O sergipano ou o cearense interpretava o Negão e o Negão e eu fazíamos as vezes dos perseguidos que não podiam abrir a boca nem a pau.

No total, juntamos umas dez passagens de ônibus, que vendemos na Rodoviária, e quatro aéreas, que preservamos para a volta. O apurado, gastamos em dois dias de farras inesquecíveis, com direito a uma noitada daquelas no Beirute.

Mas não pensem que foi só cachaça. Precisávamos ficar pelo menos mais um dia em Brasília ou o tempo suficiente de convencer duas companheiras de Goiás a se filiarem à Libelu, nossa tendência, minha e do Negão.

Foi luta, camarada, mas ajudou o fato de que os entendimentos já estavam muito adiantados e a adesão das minas, quer dizer, das meninas, ao final se consumou. Foi luta, mas com muita liberdade, diga-se.

  • • Esta é uma obra de ficção, mas qualquer coincidência com pessoas ou fatos da vida real pode ser mera semelhança.
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4 Respostas para CORAÇÃO DE ESTUDANTE, por Rubens Nóbrega

  1. Climerio Avelino de figueredo escreveu:

    História interessante. Entrei na UFPB, em 1979, justo o ano da reconstrução da UNE, e comecei a militar no Diretòrio Acadêmico Josué de Castro, no curso de Medicina. Neste ano, conheci o Valter branco e o Valter preto, duas pessoas muito inteligentes, e muitos outros militantes do ME. Fiquei curioso em saber quem era o Jotacê.

  2. Jair Cesar Miranda Coelho escreveu:

    Rubens Nobrega meu bom amigo. Alem de contar historia, fazes parte da historia da Paraiba. Um abraço.

  3. Walter Dantas escreveu:

    Não identifico o negão, mas lembro muito dessas situações que me eram relatadas por alguns…Havia um deles que esquivava-se sempre de atividades locais mas estava sempre pronto pra viajar e somente retornava depois de percorrer vários estados em sucessivas reuniões…E ai, em uma tirada genial Edson Neves cunhou a frase: ” conheça o Brasil pelo movimento estudantil”…..Eita tempo! Bom ler esse texto, Rubens!

  4. Amadeu Robson Machado Cordeiro escreveu:

    Você tem histórias amigo Rubens. Sua mente é brilhante e vc transmiti isso nos textos. Forte abraço.