Quando a pobreza em vida faz da morte uma insignificância

José Firmino, o marido, fala sobre a morte de mulher (corpo na calçada). Imagem: Valter Paparazzo/TV Cabo Branco.

Não se admirem se nossas autoridades policiais e sanitárias concluírem que Dona Maria das Neves, 63 anos, é responsável pela própria morte. Ela foi encontrada morta ontem (26) numa calçada perto do Trauminha de Mangabeira, minutos após deixar o hospital onde passara as últimas 24 horas injetando soros e analgésicos à espera de uma cirurgia que não aconteceu ou foi cancelada.

Segundo nota divulgada ontem mesmo pela Secretaria de Saúde da Prefeitura de João Pessoa, mantenedora daquele hospital, Dona Maria estava lúcida, orientada, estabilizada. Decidiu, então, ir embora. Presumivelmente para casa, pois morava a 500 metros do Trauminha. Detalhe: era diabética, tomava insulina e tinha cálculo na vesícula biliar, provável causa de suas intensas dores abdominais, momentaneamente adormecidas pela analgesia que lhe fora aplicada.

“Segundo a (Secretaria de) Saúde, o quadro não seria de urgência e ela estava lúcida, o suficiente para decidir que não queria ficar internada. Com a nota, a Secretaria de Saúde desfaz a versão de que ela saiu sem ser percebida”, informa matéria publicada no Portal Correio, do qual me socorri quando procurava alguma manifestação pública do órgão municipal sobre o Caso Maria das Neves.

“A equipe de saúde do hospital pediu para que ela permanecesse, mas não é possível obrigar um paciente lúcido e consciente a dar continuidade ao tratamento. A família foi comunicada da evasão, assim que a paciente saiu da unidade hospitalar”, disse ainda a Secretaria, que não teria se comprometido a apurar possíveis erros cometidos dentro do hospital durante o período em que Dona Maria lá esteve internada.

Na minha evidente ingenuidade e óbvio desconhecimento de leigo, acreditava que pessoas com diabetes podem ter o raciocínio lógico caso não usem insulina regularmente ou não se alimentem adequadamente Sob estresse, então, pensava este obtuso, elas podem tomar decisões erradas, capazes de lhes agravar o estado ou até matá-las. Assim, se não houver atendimento, acompanhamento ou orientação profissional competente, pacientes em tais condições sujeitam-se – talvez inconscientemente – a riscos elevados; quando não, fatais.

No caso de Dona Maria, fico imaginando se não faltou algum médico ou enfermeira fazer-lhe uma advertência mais incisiva, mais insistente, mais convincente, enfim, sobre o que poderia acontecer àquela senhora. Não teria faltado aquele cuidado a mais, aquela atenção maior, algum procedimento de rotina interna que não permitiria, por exemplo, alguém sob observação ou tratamento simplesmente ‘tirar o tubo’ e ganhar a rua? Não teria faltado um telefone para a família antes de ‘alta’, avisando: “Ei, Dona Maria está querendo ir embora e é importante que alguém venha buscá-la, viu”?

Inquietações e questionamentos como esses não importam mais, contudo. Pelo visto, a julgar pela nota que soltou, a Secretaria Municipal de Saúde já tem “a palavra mais certa pra doutor não reclamar”, como diria o poeta. Já tem um diagnóstico pronto e acabado sobre o que ocorreu. Do qual devem discordar os familiares da pobre mulher. Que pela voz de uma nora de Dona Maria anunciaram ontem mesmo, em entrevista à rádio CBN João Pessoa, disposição de constituir advogado para processar quem possa ser encontrado em culpa nesse caso.

O caso seria de negligência médica, na linha do socorro tardio, tão comum a situações em que os pacientes são pessoas de baixa renda, maioria da clientela do sistema público de saúde. Temo, contudo, que um processo sob tais circunstâncias não prospere favoravelmente à parte mais fraca. Fico só imaginando… Vai que algum julgador, de classe social similar a dos possíveis julgados, aplica ao Caso Maria das Neves o princípio da insignificância!

Digo desse jeito porque em maio deste ano o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que não deve ser punido o roubo de celular comprado por menos de 500 reais. Roubo de celular de quem pode menos e chora mais não merece ser apurado, portanto. Punido, então, nem pensar. “Oxe, meu irmão, e o que tem a ver uma coisa com outra?”, direis. Ora, meu caro, pertenceu a gente pobre, vida ou celular, carimbe-se como bagatela e sigamos em frente!

É BOM ESCLARECER
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16 Respostas para Quando a pobreza em vida faz da morte uma insignificância

  1. Daiana Soares de Souza escreveu:

    Gente, a família ficou no local até o momento que foi permitido. É permitido o idoso ter acompanhante e a família ficou acompanhando ate o momento da transferência para a área vermelha, em que NÃO é permitido ficar alguém de acompanhante. Iria a família ser contra uma ordem institucional? Obvio que não. Contudo, a senhora ficou sozinha no hospital (em sentido de não ter familiares), com certeza deve ter ficado nervosa e realmente não quis permanecer no local, seja pelo cancelamento da cirurgia ou porque estava se sentindo mal, desassistida, com fome, etc. Ela não havia se alimentado e tinha diabetes. Qualquer pessoa se sentiria mal, sendo idosa e com outros problemas de saúde fora o que estava se queixando no momento, complicou mais a situação. Então, se é verdade o que a gestão do hospital disse, de que ela teria ficado nervosa e tirado os aparelhos as quais estava, então porque a direção ou a pessoa responsável não ligou para a família ficar nem que fosse na recepção, após isso? (Vigiando, já que o vigia não poderia vigiar cada individuo) Se o hospital estava ciente de que ela não queria permanecer no local, chamasse imediatamente a família, seja para leva-la do hospital se ato responsabilizando ou entrasse em acordo com a família de alguém realmente ficar na proximidade, dentro do hospital, observando. Mas, trataram o assunto ”ha Deus dará” como diz o ditado. O hospital sabendo do histórico dela de saúde, se comportou como irresponsável porque não tomou as providencias de tentar garantir a vida dela, simplesmente agiram ”se ela quiser sair, saia”. E infelizmente, a falta de amor, compromisso com a área que deveriam ter, deu no que deu.

  2. Márcia de Windson Viana escreveu:

    A nossa saúde está no CTI!

  3. Maria Helena escreveu:

    Boa tarde! Porem triste com a noticia.

    Lamentável o que a conteceu com mais uma Maria das Neves..É assustador a maneira como as pessoas vêm se tratando uns aos outros (0 humanizacao).

    A equipe de plantão, precisa se responsabilizar e/ou ser responsabilizados pela morte dessa senhora, independente da “lucidez”, e o poder voluntário dela decidir ir embora conforme foi colocado.

    O hospital tem inteira responsabilidade de esgotar todas as formas de contato de esclarecimento ao paciente e responsável quanto a Internacao ou pronto atendimento e até mesmo a alta, ainda mais se o paciente tem risco de morte, como foi o caso..

    Antes de qlq liberacao, faz se necessario ,esgotar todos as articulacoes, familiares, discussão do caso com a equipe e uma profunda avaliação, ja que tinha uma indicação de cirurgia), relato em prontuário e nos livros de ocorrências ou anotações, dentre outros.

    Fica claro a falência das nossas políticas públicas (Saúde, segurança, educação, previdência e habitação), bem como o sucateamento da saúde e o descompromisso ético e politico das categorias ou agentes técnicos frente a um cuidado.

  4. Maria José dos Santos escreveu:

    Trata-se de um caso claro de falta de humanidade. No SUS não faltam verbas, o que temos um monte de profissionais que parecem está nas unidades para receber apenas o seu salário. Sabemos que há exceções. Gente bacana, comprometida. A esta família foi negado o seu direito fundamental à saúde. Se logo ao sair deste hospital, D. Maria das Neves veio à óbito, é lógico que ela estava mal. Por que ninguém enxergou isto? Simplesmente porque não olharam para ela, como não olham para tantos e tantas outr@s. Caso triste, revoltante e que não pode acontecer mais. Infelizmente, este não foi o primeiro caso, mas pode ser o último. Poderia ser o último. Por que não?

  5. Elisangela escreveu:

    O que posso falar ao ler esse blog, sei exatamente o que esta familia está passando, há 7 anos atraz minha mãe passou exatamente o que D. Maria. Coincidentemente também chamava-se Maria, com diabetes alterada foi enviada pra casa sem informações necessárias, senhora leiga que não sabia o que estava acontecendo com ela, como iria se cuidar. Horas após sua alta faleceu.
    Hoje há seus filhos só nos resta saudade.
    Processos e brigas judiciais não ira trazer D. Maria de volta, mas será um grito de luta pelo direito a melhoria da saude publica, e para não acontecer novamente . Para que Marias e Joãos não faleçam em portas de hospitais ou no caminho de casa.

  6. livramento leite escreveu:

    O que se escuta sobre diabetes, é silenciosa e mata quando não cuidada.
    Hipertensão arterial se muito baixa causa problema sério se muito alta causa enfarto. Complicações no coração
    Mata por todas as insuficiências cardíacas. Dona Maria, assim como eu, somos iguais em doenças e pobreza.portanto ainda não terminou o descaso do poder público com a saúde. Minha solidariedade à família de Dona Maria e seu José.

  7. Rita de Cássia Silva. escreveu:

    Muito verdadeiro esse texto sobre o assunto! Resumindo, foi descaso sim omissão sim falta de respeito com uma senhorinha q precisava de socorro e que estava sem alimentação. Diabética! E mesmo sabendo q ela não ia fzr a cirurgia mantiveram a coitada com fome. Isso e desumano gente!

  8. Ray escreveu:

    Vergonha para esse hospital, mas isso não foi o primeiro e não será o último.meus pêsames para a família, mostra que ser pobre a vida não vale nada. Sempre essas notas que o hospital dar é só favorável a eles mesmo,pra tirar a culpa ????

  9. Agenilson Santana escreveu:

    Fica claro que faltou apoio do grupo de profissionais da Saúde: médico, enfermeiras, assistente social, recepcionista e porteiro. Todos se isentam de responsabilidade, inclusive a família. É de se lamentar.

  10. Paulo escreveu:

    Trata-se descaso e desumanidade do poder público com a saúde das pessoas que não tem assistência de familiar ou responsável. A omissão de socorro é latente e deve ser investigada a fundo, para que os culpados sejam punidos. A vida de qualquer ser humano é importante e não deve ser negligenciada dessa forma, como se fosse natural deixar que uma pessoa fique à própria sorte e morra. O que ocorre é que as instituições de fiscalização estão engessadas politicamente, quer seja economicamente e que deveriam fiscalizar e exigir do governo o melhoramento lato sensu do atendimento médico.

  11. José escreveu:

    Muito lamentável essa situação, mas, essa senhora não tinha um parente para acompanha-lo? a saúde infelizmente é um caos, até por saberem disso deveria não terem abandonado a pobre dessa senhora sozinha num hospital? Será se ele tivesse dinheiro e um plano de saúde, teria com certeza um acompanhante, o hospital sim que ser responsabilizado por ter sido no mínimo negligente, mas eu não deixaria um ente querido num hospital sozinho, já presenciei casos em que os parentes ficam aguardando sentados e até dormindo em bancos fora do hospital.

    • Aldenora Paulo escreveu:

      A paciente estava sendo acompanhada o tempo todo pelo seu esposo até precisar ser levada para sala vermelha, que não pode ter acompanhante.

  12. Marcela Sitônio escreveu:

    Ser humano não é para qualquer animal. Podemos dizer que a vida vale quanto pesa a carteira.

  13. Socorro Menezes escreveu:

    Infelizmente com esse Governo Federal que aí estar ,a cada vez mais pobre não tem vez mesmo , como.pode um.celular de 500,00 o ladrão não.vsi ser punido, voltando ao.caso de De d María das Neves está.provado que houve negligência , se ela tivesse sido bem tratada e claro que ela mesmo não teria tomado a decisão de ir embora .Eu.sei como é esse trauminha.precisei de levar meu filho acidentado aí nesses 15 dias é vi como é o tratamento de lá inclusive das pessoas que fazem a ficha .

  14. Fernando Abath Cananéa escreveu:

    Exatamente assim meu caro Rubens. Será que deixariam sair sem avisar a família se essa senhora fosse paciente de plano de saúde? Como a vida de alguns nada valem. E o que é pior, é a nota insensível da prefeitura isentando-se de qualquer responsabilidade.