RIACHO VERDE, por João Fragoso

(Ilustração: quadro de Adolf Chwala/Pinterest)

E se eu tivesse nascido rio? Ah, eu queria ter nascido Riacho Verde, em Teixeira, para percorrer terras enfeitadas de poesias e de saudades. Não me importaria de navegar por leitos duros, forrados de lajedos, desde que sentisse as carícias da brisa à luz insinuante da lua.

Eu contemplaria, já com saudades, as luzes mortiças das casas à margem. Quem sabe não ouviria acordes de violão sob o brilho das estrelas e, também, gemidos de amor na noite escura, quando o amor se faz mais íntimo.

Sob os pés de cajás, de cajus, perenes observadores do meu passar, namorados se acomodariam e, tocados pelo cenário que eu lhes ofertava, encher-se-iam de ternura e se acariciariam, numa intimidade ousada e sem censuras.

Uma verdadeira sinfonia me acompanharia. Cantos de moçoilas apaixonadas e também sofredoras, benditos religiosos em agradecimento por aquela água passante, cantorias de repentistas improvisando o momento de alegria, homens e mulheres desafinados expressando o seu sentir, gritos de meninos que se enfiassem em meu interior.

Todos me aguardariam com expectativa e me receberiam com prazer. Eu serviria de alimento para toda a vida ciliar. Ninguém me perguntaria de onde vim ou qual o meu destino, parecendo que todos já saberiam.

Eu desfilaria garboso entre as serras e penhascos, umedecendo a terra que se tornaria fértil, produzindo sustento para as populações ribeirinhas. Regaria as árvores e vegetações que logo se apresentariam verdes, embelezando a passarela que me serve de leito.

Eu leria gratidão nas flores de cores exuberantes, tais e quais as de canafístulas, dos paus-d’arco roxos e amarelos ou flores simples das jitiranas rastejantes, dos chumbinhos e marias pretas que enfeitassem as minhas margens. De manhã, quando os raios do sol se refletissem no espelho de minhas águas, cores, luz e flores se misturariam, fazendo-me a natureza uma de suas mais lindas telas.

No inverno aumentaria o volume de minhas águas e as duas margens dar-se-iam as mãos, numa aproximação natural e efêmera, em que eu me sentiria feliz por ser o vínculo de união. Aqui e acolá, riachos menores viriam unir-se a mim de modo indissolúvel e, juntos, perambularíamos, fazendo zigue-zague, driblando a geografia.

Garotos apostariam corridas comigo num sobe e desce constante, mas não veria nisso uma competição. Entenderia aquela atitude como um adeus elástico que eu queria sem fim. Seria uma grande festa, todos me conheceriam e me chamariam pelo nome: Riacho Verde.

Quem sabe ainda jovens faceiras se banhariam em minhas águas e eu seria uma testemunha acidental de suas confidências. E também de suas frustrações. Quantas lágrimas se misturariam às águas minhas? Lágrimas de satisfação e de amor, lágrimas de sofrimento e de saudades e eu recolheria aquelas expressões e sentimentos para conduzi-los comigo até o meu destino, comprometendo-me a não revelar a ninguém.

E se as minhas águas, em todo o seu trajeto, ficassem tão disponíveis, por que procurariam me deter ou conter com açudes e barragens? Por que quebrar a minha unidade se sempre fui meio de comunicação entre moradores das margens? Eu me sentiria enfraquecido e já não me estenderia de borda a borda do meu leito, temendo que pudesse ser reduzido a um inexpressivo filete de água quase sem serventia. Eis a razão da minha ansiedade pela chegada do inverno, para ficar caudaloso e não me sentir riacho ou menos.

De banhistas eu ouviria notícias de que as minhas águas iriam terminar num grande açude. Eis aí o meu maior receio: confundir-me com outras águas, perder a minha identidade. E as confidências, das quais me tornaria depositário? E as lembranças das terras por que passei? Dos amores que presenciei? Das rodas nos terreiros? Das alegrias com minha passagem? Onde eu iria guardar? A quem eu iria contar, se as outras águas nada de comum teriam comigo?

Eu não queria que nada impedisse meu caminho livre, mas, pelo visto, eu me aproximaria rapidamente desse meu pesadelo. Afinal, se o inverno chega e me avoluma, continuo a jornada, mas…

Mas o quê? Eu me misturaria às águas de outros rios, bem maiores. Ninguém mais me reconheceria. O final seria o oceano, palavra que me mete medo desde o meu nascer. Oceano, monstro que massifica águas de todos os rios, pequenos ou grandes. Seria o fim do Riacho Verde.

Sem contar que a enorme massa de água, ora verde, ora azul, desloca-se por vários continentes, de populações de diversos idiomas. Se for assim, não vou entender o que falam meus banhistas, pescadores, tripulantes de barcos ou navios.

Mas eu ouviria também que eu não correria o risco de ser absorvido pela terra seca ou minhas águas subirem aos céus, em forma de vapor, por força do sol inclemente do sertão. Eu me tornaria perene, eu teria vida, mesmo que confundido com outras águas. Mesmo sem o romantismo daquela correnteza passageira que se insinuava, passando entre roçados e sítios, levando alegrias e esperanças a muita gente.

  • • O Professor Romero Antônio apresenta o autor: “Presidente do Sindicato dos Bancários da Paraíba nos anos sessenta, preso pela ditadura por sua atuação, hoje, aos 82 anos, João Fragoso continua trabalhando para que suas utopias socialistas se materializem. É irmão de D. Fragoso e participa do Coletivo Cotonetes”.
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