A linguagem de Temer é um instrumento de exclusão

  • por Rodrigo Ratier

(Ilustração: Lucas Magalhães sobre foto de Lula Marques)

Falar difícil não é falar bem

É triste ter Michel Temer como presidente. Pesquisas apontam sua baixíssima aprovação. São apenas 9%, segundo o último Datafolha. Para mim, o maior indício de sua enorme impopularidade é uma nesga do debate, interminável e inútil, entre coxinhas e petralhas.

Os primeiros dizem que a culpa é dos segundos. “Temer era vice de Dilma, vocês votaram na chapa.” Os segundos atribuem o problema aos primeiros. “Votamos em Temer para vice, a culpa é do impeachment que vocês apoiaram.”

Ninguém, enfim, quer assumir a paternidade de uma administração que agravou o que prometia combater. Um governo cujo conteúdo e forma se anunciavam na “carta pessoal” que Temer, então vice-presidente, enviou a Dilma em 7 de dezembro de 2015.

A lista de 11 lamentações – todas de cunho pessoal, resumidas na queixa de ser tratado como um “vice decorativo” –, começa com uma citação em latim. “Verba volant, scripta manent”. As palavras voam, os escritos permanecem, na tradução literal.

A paixão por uma joia antiquada

Depois foi a vez da mesóclise. Primeiro, no discurso de posse. “Quando menos fosse, sê-lo-ia pela minha formação democrática e pela minha formação jurídica.” Seguiram-se outras ocorrências, sobretudo no começo do governo, ainda no interinato.

O latim, você sabe, é a língua indo-europeia ancestral do francês, do espanhol e do português. Foi a principal do mundo ocidental por mais de mil anos. Mas hoje é uma língua morta, sem falantes nativos. Já a mesóclise é a colocação do pronome oblíquo no meio do verbo, entre o radical e as terminações. Pode ser usada no futuro do presente (vê-lo-ei) e no futuro do pretérito (vê-lo-ia). Pode ser usada. Mas, hoje, raramente é. Para o escritor Sérgio Rodrigues, trata-se de “uma joia antiquada da nossa gramática”.

Não é descabido perguntar por que Temer escolheu essas formas para se comunicar.

A hipótese mais citada é a vontade de se diferenciar dos antecessores. Aos olhos dos críticos, Lula era tido como incapaz de falar sem cometer equívocos. De Dilma reprovava-se a desarticulação e a falta de clareza. Temer, por sua vez, seria um presidente capaz de “falar bonito” e de respeitar a norma culta.

Entre o culto e o cultuado

Mas há diferença entre norma culta e norma cultuada. A culta é a falada no dia a dia por quem cresceu falando e estudando a língua. Pessoas que completaram o ensino superior, por exemplo.

A cultuada é a de Temer. E das gramáticas tradicionais. É o tal “português correto” – que não passa de um mito, como afirma o linguísta Gabriel de Ávila Otero no recém-lançado Mitos de Linguagem.

Otero explica que a língua descrita pelas gramáticas normativas é inatingível. Diz que ela é “mais idealista que realista, mais lusitana que brasileira, mais antiga do que contemporânea e mais prestigiada do que deveria”.

Há razões para esse prestígio. “Numa época em que a discriminação de raça, cor, religião ou gênero não é publicamente aceitável, o último bastião da discriminação social velada vai continuar a ser o uso da linguagem de uma pessoa”, escreve Otero, citando a sociolinguista britânica Lesley Milroy.

A língua cultuada torna-se, então, um instrumento de poder. Ela segrega quem não domina seu código. Ridiculariza quem se desvia da norma.

O português jurídico que exclui

Algumas áreas usam esse mecanismo à exaustão. O direito é um exemplo gritante. Para compreender um texto jurídico, é preciso superar uma dupla barreira. A primeira é o conhecimento da legislação. A segunda é a da linguagem própria dos profissionais, quase sempre propositalmente complicada.

Em alguns casos, cada vez mais complicada. E aí voltamos às mesóclises tão caras ao nosso presidente. Um artigo do advogado João Ricardo da Costa Gonçalves traz uma comparação esclarecedora. Ele contou o total de mesóclises em três Constituições brasileiras. Na de 1824, havia duas. Na de 1891, 25. Na de 1988… eram 81! Isso apesar desse tipo de colocação pronominal ter caído em desuso décadas antes da promulgação da última Carta Magna.

Não por acaso, o direito é a área de origem de Temer. Seja pela recusa ou pela incapacidade de se fazer entender por um público mais amplo, o presidente legitima a linguagem como ferramenta de exclusão social.

Como quase tudo em seu governo, o verniz erudito também virou motivo para memes na internet. Em tom de brincadeira, o presidente anunciou que não iria mais usar mesóclises. Talvez pelos motivos errados (“Ontem li um artigo de um cidadão me criticando pelo fato de eu falar bem o português”) e não pela necessidade de ser compreendido pelos falantes de variedades estigmatizadas da língua.

A esperança é que outro ou outra presidente seja capaz de usar a língua como instrumento de inclusão. Aguardamos esse acontecimento. Celebrá-lo-emos.

  • Publicado originalmente em 20.6.2017 no portal da Associação Nova Escola
É BOM ESCLARECER
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3 Respostas para A linguagem de Temer é um instrumento de exclusão

  1. João Eudes de Souza escreveu:

    Escafeder-me-ei na próxima eleição, prefiro pagar multa.

  2. alberto corte real escreveu:

    ouvilo-emos.

  3. Edson Verber escreveu:

    Ótimo artigo, Rubão. Pois mostra q o ocupante do Jaburu, além de ser eximiu excludente dos pobres no acesso às riquezas produzidas – veja-se o aumento da pobreza – tambem fala um linguajar inacessível a maioria q também o reprova como Presidente.